A colecção Miró ainda pode ser classificada pelo Estado português, diz a juíza

O caso dos 85 Miró do BPN, se avançar um pedido de classificação, pode perfilar-se como único no historial do património português.

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Le chant des oiseaux à l’automne, de 1937, é uma das 85 obras da colecção CHRISTIE'S IMAGES

A sentença da juíza Guida Jorge diz que ainda é possível que a colecção Joan Miró do Banco Português de Negócios (BPN) seja inventariada e classificada. Essa é uma das seis conclusões do acórdão do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, no qual a juíza escreve que "não se verifica a impossibilidade de o Estado classificar as obras em questão".

A juíza Guida Jorge indeferiu na manhã de terça-feira a providência cautelar para impedir a venda das obras que fazem parte dos activos do BPN, mas a Christie’s acabou por cancelar o leilão das 85 obras marcado para o final da tarde.

Na Direcção-Geral do Património Cultural (DGPC) existe já pelo menos um pedido de abertura de um procedimento administrativo para avaliação da colecção Miró para sua eventual classificação – estes pedidos podem ser feitos por qualquer indivíduo ou entidade, português ou estrangeiro. Este foi enviado a 15 de Janeiro pelo grupo de deputados socialistas cuja exposição ao Ministério Público originou a audição em tempo recorde no Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa, mas o processo não foi aberto.

Dois dias depois, a 17 de Janeiro, a DGPC contacta a Parvalorem e a outra sociedade gestora do património nacionalizado do BPN, a Parups, com um pedido “de confirmação da actual localização dos lotes” das obras de Miró. Isto porque, como se lê numa resposta da directora da DGPC, Isabel Cordeiro, enviada segunda-feira para o Parlamento e a que o PÚBLICO teve acesso, “constitui condição sine qua non a presença de bens culturais em território nacional” para autorizar a sua expedição – que a DGPC considera ser ilícita, posição que foi corroborada pelo tribunal na terça-feira.

Não há registo de classificação
Segundo o PÚBLICO apurou, a abertura legal de um procedimento de inventariação ou classificação depende da observação directa das peças em causa para avaliar o seu valor patrimonial e cultural. As obras de Miró encontram-se em Londres há vários dias e a situação actual perfila-se como inédita no histórico da inventariação e classificação de bens culturais em Portugal, porque não há registo de um processo de classificação que tenha sido iniciado com as peças em causa fora do país.

O secretário de Estado da Cultura, Jorge Barreto Xavier, disse terça-feira ao PÚBLICO que estas colagens, pinturas e desenhos de Miró são “obras que não estão inventariadas, nem [está] aberto nenhum processo de classificação”. E explica que, segundo a Parvalorem e a Parups, “foram compradas por privados há menos de dez anos” – Barreto Xavier refere-se ao artigo 68.º da Lei de Bases do Património Cultural (LBPC) que diz que “salvo acordo do proprietário, é vedada a classificação como de interesse nacional ou de interesse público do bem nos dez anos seguintes à importação ou admissão”.

“Em função disso não podemos, de acordo com a Lei do Património, classificá-las”, diz o secretário de Estado, argumentando que, à luz daquele diploma, “se não tivermos autorização dos proprietários para abrir processo de classificação não o podemos fazer. Não depende da minha vontade política”.

Contudo, o despacho do Tribunal Administrativo do Círculo de Lisboa diz que a Parvalorem e a Parups não apresentaram “os documentos comprovativos das importações e admissões das obras há menos de dez anos”. E também não “foram localizados nos arquivos da DGPC quaisquer documentos relativos às importações e admissões das obras em apreço”, lê-se ainda no despacho do tribunal, que cita o depoimento de Isabel Cordeiro.

A apreciação da juíza diz assim que “não se demonstrou que as obras em causa não pudessem ser classificadas”, porque as duas sociedades gestoras não podiam apenas “alegar que as obras tinham sido importadas há menos de dez anos”, mas sim “provar que assim tinha acontecido”.

Como a Parvalorem e a Parups não o comprovaram, a decisão do tribunal frisa que “existe oportunidade de decisão quanto ao momento em que deve ser decidida a abertura dos procedimentos administrativos de inventariação ou classificação de bens culturais”.

A juíza conclui ainda que “a alienação das obras foi ponderada, tendo em vista o encaixe imediato de um valor não inferior a 36 milhões de euros, sem se ter equacionado a sua classificação como bens culturais e eventual rendimento futuro e a médio ou longo prazo ou os bens de natureza não patrimonial que proporcionariam no caso de virem a ser expostas ao público” – um dos argumentos da DGPC e dos dois autores de pareceres especializados, Pedro Lapa e David Santos, directores dos museus Berardo e do Chiado, respectivamente, quando chamados a pronunciar-se sobre a relevância da colecção e das possibilidades da valorização destes 85 Miró em Portugal. com Lucinda Canelas

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