Matteo Renzi desafia “o imobilismo crónico” do sistema político italiano

A reforma da lei eleitoral é a primeira iniciativa do novo líder do centro-esquerda. É apenas o primeiro passo. Os riscos são elevados. Tem de resistir ao seu partido e de arrancar concessões a Berlusconi

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Os pequenos partidos denunciaram o ataque ao pluralismo parlamenta AFP

Salvo surpresa de última hora, o projecto de reforma da lei eleitoral italiana começará a ser debatido esta quinta-feira na Câmara dos Deputados. A iniciativa partiu de Matteo Renzi, líder do Partido Democrático (PD, centro-esquerda), que transformou esta reforma num combate em que joga a sua liderança, tentando romper “o imobilismo crónico do sistema”. Corre riscos, advertem os analistas. “Prefiro correr o risco de falhar a manter-me firme no pântano”, responde. Depois de uma semana caótica de negociações e regateios, o PD chegou ontem a um acordo com a Força Itália (FI, centro-direita), de Silvio Berlusconi.

Foi uma operação vertiginosa. Renzi, eleito em Dezembro líder do PD, negociou directamente com Berlusconi, obtendo no dia 18 de Janeiro uma base de acordo sobre as reformas institucionais. Dois dias depois a direcção do PD, apesar da oposição da minoria, aprovou o texto sem votos contra: 111 a favor e 34 abstenções. O plano visa favorecer a governabilidade. Inclui uma nova lei eleitoral, a transformação do Senado numa Câmara das Autonomias, pondo fim ao “bicamaralismo perfeito”, e um reequilíbrio entre o poder central e as regiões.

Tempestades
A modificação da lei eleitoral não é drástica, mas logo dividiu os partidos e desencadeou uma tempestade entre constitucionalistas. São duas as disposições mais polémicas. A primeira é uma elevação do patamar para uma força política ter representação parlamentar. Sobe de 2 para 4,5% (partidos incluídos numa coligação), 8% (partidos não coligados) e 12% (coligações). A segunda é a conservação de um “prémio de maioria” para o partido ou coligação mais votado. Um partido que obtenha 37% dos votos, receberá um prémio que lhe garantirá entre 53 e 55% dos deputados. Se nenhuma lista obtiver esse número, haverá uma segunda volta entre os dois concorrentes mais votados.

Os pequenos partidos — partitini, na gíria política — denunciaram o ataque ao pluralismo parlamentar. O constitucionalista Giovanni Sartori explicou que o novo sistema, embora menos escandaloso que o anterior, significa o mesmo: transformar uma minoria eleitoral em maioria parlamentar. Outro constitucionalista, Roberto D’Alimonte, que foi conselheiro de Renzi, replicou que é isso mesmo que se pretende: favorecer maiorias que não fiquem reféns dos partitini. Lembra que, no seu terceiro mandato, Tony Blair obteve 55% dos deputados com 35% dos votos e que o PSF de François Hollande tem 52% dos deputados com 29% dos votos. Tanto Sartori como D’Alimonte seriam favoráveis ao modelo francês — eleição em círculos uninominais com segunda volta, mas é um sistema recusado por Berlusconi.

Uma parte da esquerda ficou chocada por Renzi ter negociado com Berlusconi, judicialmente condenado e excluído do Senado. Houve títulos como: “Renzi ressuscita Berlusconi.” Vários editorialistas advertiram o secretário do PD contra o risco de ser instrumentalizado pelo Cavaliere.

O “caos que se segue”
Uma lei eleitoral não reforma necessariamente a política. A lei pode ser votada amanhã na generalidade — se a Câmara conseguir ultrapassar as manobras de obstrução do Movimento 5 Estrelas (M5S), de Beppe Grillo, e dos pequenos partidos, que já apresentaram centenas de emendas. Renzi deseja a aprovação final em meados de Fevereiro na Câmara e, em Março, no Senado, de modo a fazer avançar o debate da reforma da câmara alta — abolir a anomalia italiana que impõe que o governo tenha a confiança de duas câmaras que frequentemente têm composição diferente. Nada está garantido: havendo voto secreto, os analistas admitem que muitos deputados do PD ou da FI possam furar o acordo.

Note-se que a reforma mais simples é a da lei eleitoral. Mais delicada será a do Senado. E o tema mais dfícil ainda não está sequer em cima da mesa. Serão as leis do trabalho, cuja reforma está associada ao modelo fiscal. Neste ponto — que foi crítico para o governo Monti — Renzi não tem mostrado pressa e parece esperar pelas eleições europeias de Maio: “Fará estalar o conflito entre a esquerda conservadora e a esquerda modenizadora”, avisa o politólogo Luca Ricolfi.

A cena política italiana vive uma época estranha. A direita continua sem ter uma alternativa a Berlusconi. O dissidente Angelino Alfano está no governo mas tem uma base política muito limitada. O primeiro-ministro, Enrico Letta, tem prestígio mas, desde eleição de Renzi, dispõe de uma autonomia muito limitada. A sustentação do executivo depende do Presidente Giorgio Napolitano.

Renzi é hoje o único líder forte mas num partido em que, se foi plebiscitado, continua a ser olhado como “um corpo estranho” pelo velho aparelho. Tem de afrontar em Março as eleições regionais e, em Maio, as europeias. Precisa de obter o sucesso das reformas até Outubro — data da sua aprovação definitiva — para mostrar aos italianos a sua estatura política e poder enfrentar a prova de fogo das eleições.

 

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