Renegociar a dívida é urgente: carta aos deputados e deputadas da Assembleia da República

O cenário mais desejável para a renegociação da dívida seria o de um acordo multilateral à escala da zona euro.

A renegociação da dívida pública é inadiável. Como se reclama na petição Pobreza Não Paga a Dívida, Renegociação Já, de que somos signatários com mais de seis mil outros cidadãos e cidadãs, é urgente desencadear um processo de renegociação da dívida pública que defenda o interesse nacional e trave o processo de regressão económica e social atualmente em curso.

No momento em que a petição está a ser entregue à Assembleia da República, vimos tornar explícitas as nossas razões. Em primeiro lugar, as razões pelas quais acreditamos que a dívida pública não pode, nem deve, ser paga a todo o custo. Em segundo lugar, as razões por que pensamos que há reestruturações da dívida que devem ser evitadas e outras que são necessárias e indispensáveis. Em terceiro lugar, os motivos que nos levam a pensar que há obstáculos e riscos numa renegociação que devem ser antecipados e que exigem por parte do Estado português uma preparação técnica e política cuidada.

A dívida não pode nem deve ser paga a todo o custo.

Em 31 de dezembro de 2013, a dívida pública direta ascendia a 204,3 mil milhões de euros (124% do PIB). O seu serviço obriga a uma despesa anual com juros da ordem dos 7 mil milhões de euros, quase tanto quanto o orçamento da saúde. A dívida é insustentável a nível financeiro, económico e social.

A viragem para a austeridade, em nome da inversão da trajetória de crescimento da dívida pública desencadeou uma recessão profunda que tem consequências sociais insuportáveis: falência de empresas e aumento do desemprego; desproteção crescente dos desempregados e de outros setores mais vulneráveis da população; expulsão do país, sob a forma de emigração, de um número crescente de portugueses; agravamento das desigualdades, da pobreza e da exclusão social. Em nome do serviço da dívida estão a ser alienados recursos estratégicos para o país e comprometidos os sistemas públicos de saúde, de educação e de pensões. A recessão prolongada está a encaminhar a economia e a sociedade portuguesa para uma trajetória de declínio.

A dívida não deve ser paga a todo o custo. Nada pode justificar que os compromissos com os credores se sobreponham aos compromissos do Estado para com os pensionistas, os desempregados e a maioria dos cidadãos.

A dívida pública terá de ser reestruturada, mas há reestruturações que devem ser evitadas

Algumas reestruturações não resolvem nenhum problema. Foi o caso do Plano Brady na América Latina e do programa de envolvimento do setor privado (PSI) grego. Estes planos não libertaram recursos que pudessem ser aplicados no estímulo da economia e portanto não quebraram o ciclo de endividamento.

Portugal precisa de uma reestruturação da dívida que o defenda do empobrecimento e do declínio. Uma reestruturação que reponha a sustentabilidade financeira e social da dívida deverá envolver todos os credores, com exceção dos pequenos aforradores e investidores públicos residentes e terá de impor um significativo corte sobre o capital. Deve incluir também o alongamento das maturidades e taxas de juro compatíveis com a recuperação económica.

Há obstáculos e riscos numa reestruturação que devem ser antecipados

Os bancos portugueses detêm uma parte não negligenciável da dívida pública portuguesa. Esse facto obriga a tomar em conta os efeitos negativos imediatos de uma reestruturação na sua situação económico-financeira, tendo em vista a necessidade de manter um sistema bancário capaz de conceder crédito à economia e de assegurar os direitos dos depositantes.

O cenário mais desejável para a renegociação da dívida seria o de um acordo multilateral à escala da zona euro. No entanto, à luz da evolução política em países determinantes das políticas da União Europeia, um tal cenário é implausível no futuro próximo. À falta de um processo negocial num quadro multilateral, cada país, incluindo Portugal, deverá dar por si os passos necessários para desencadear o processo negocial nas condições que melhor sirvam os seus interesses.

Nessas circunstâncias, dificilmente poderá ser evitada a declaração de uma moratória ao serviço da dívida, isto é, uma declaração da suspensão do pagamento dos juros e das amortizações que pode ser anunciada em conjunto com uma proposta de negociação tendente à reestruturação da dívida. A declaração de uma moratória envolve naturalmente riscos, relativamente aos quais a preparação prévia é indispensável.    

O maior risco da declaração de uma moratória ao serviço da dívida é o de uma retaliação por parte do BCE que envolva o corte de financiamento à banca portuguesa, a exemplo da ameaça feita a Chipre, Irlanda e Itália. A concretização de uma tal retaliação equivaleria a uma expulsão unilateral da zona euro – uma situação não admitida pelos tratados.

Como nenhum país pode viver sem banco central enquanto financiador de último recurso, a resposta inevitável, nessas circunstâncias, teria de ser a recuperação da soberania monetária. A expulsão ou retirada da zona euro é um cenário extremo que deve ser preparado e precavido.

Uma renegociação da dívida é um processo de enorme complexidade. Como tal, consideramos que o Estado português deve dotar-se dos recursos necessários para enfrentar o desafio. Como também se escreve na petição, propomos à Assembleia da República que no âmbito das suas competências próprias crie uma entidade para acompanhar a auditoria da dívida e preparar o seu processo de renegociação, capaz pela sua composição e funcionamento, de assegurar a isenção de procedimentos, rigor e competência técnicas, participação cidadã qualificada e condições de exercício do direito à informação.

Eugénia Pires, Isabel Castro, José Castro Caldas, Luísa Teotónio Pereira, Manuel Martins Guerreiro

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