Pelo fim das praxes

Nas últimas semanas vieram a público vários relatos que mostram o carácter violento e por vezes mesmo bárbaro de muitas praxes académicas.

Tudo indica que a morte trágica de estudantes na praia do Meco resultou de rituais de risco, praticados no contexto de comportamentos impostos pela praxe da Universidade Lusófona. Não será necessário que o inquérito em curso nos elucide sobre o que de facto se passou, porque se impõem medidas imediatas.

A praxe académica tem origens remotas. Começou na Universidade de Coimbra por impor o "foro académico" a sobrepor-se à lei civil. Existia um corpo policial próprio, os "Archeiros", que aplicavam a "lei" e zelavam pela "ordem" no campus.

Com a criação de outras Universidades, a praxe académica generalizou-se, mas sempre surgiram problemas: muitos incidentes aconteceram, até à proibição que se seguiu à implantação da República em 1910. Regressou na ditadura, para sofrer um decréscimo logo após o 25 de Ãbril e voltar em força nos anos 80. Esta flutuação da praxe não é por acaso: a sua importância não se enquadra numa auscultação e participação democráticas dos membros das Universidades, antes é provável que surja relacionada com a tentativa de mostrar força e unidade em estruturas universitárias privadas mais recentes e menos prestigiadas, onde os rituais mostram particular violência.

As autoridades académicas não cumprem a lei. Reagem com um sorriso e um olhar indiferente a inúmeras situações de humilhação e provocação dos estudantes recém-chegados, como se nada lhes dissesse respeito.

Convém lembrar aos Reitores o que deveriam ser os primeiros a cumprir: a lei 62/2007, sobre o regime jurídico das instituições de Ensino Superior, determina ser infracção disciplinar a "prática de actos de violência ou coacção física e psicológica sobre outros estudantes, designadamente no quadro das praxes académicas".

Em 2008, o ministro Mariano Gago - cujo desempenho deveria ser sempre realçado - escreveu, a este propósito: "a degradação física e psicológica dos mais novos como rito de iniciação é uma afronta aos valores da própria educação e à razão de ser das instituições de ensino superior e deve ser eficazmente combatida por todos: estudantes, professores e, muito especialmente, pelos próprios responsáveis das instituições", referindo ainda que, em relação às associações de estudantes "(…) espera-se um contributo activo, não só não acolhendo nem apoiando acções que, a coberto de pseudo intenções de integração dos jovens estudantes, põem objectivamente em causa aqueles valores, como promovendo iniciativas no sentido de uma verdadeira integração na comunidade académica."

Como psiquiatra, sou testemunha de situações de ansiedade grave e de quadros depressivos desencadeados pelos rituais de humilhação a que os estudantes foram submetidos. Mesmo no ensino básico e secundário, a prática de "assinalar" com marcadores os novos alunos não respeita a sua dignidade e deveria ser proibida pelos directores das escolas.

Todos nos devemos manifestar contra as praxes e exigir regulamentos próprios a cada escola, elaborados pelos responsáveis académicos depois de ouvir os estudantes, que determinem com rigor o que se entende pelos rituais de acolhimento e integração, proibindo em definitivo o que ultrapasse ou ponha em risco a dignidade de cada um. 

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