O preconceito em relação ao Outro

O extermínio foi apresentado irracionalmente como uma luta de sobrevivência dos alemães.

O homem que massacra não mostra a bestialidade que se diz guardada em cada um de nós; ele é o homem cheio de futuro, desprovido de qualquer sentimento moral e que mata porque isso lhe dá prazer.

Todorov, A Conquista da América, 1983

Em diferentes relatos de viagens do Tempo das Descobertas, são os povos africanos e “índios” descritos pelos navegadores portugueses e espanhóis como “quasi bestas em semelhança humana” (1) ou “bestas brutas […] raça mais cheia de vícios e de bestialidades” (2). Considerados inferiores pelas suas diferenças físicas e culturais, suscitam o desprezo dos que etnocentricamente os observam. Esse preconceito em relação ao Outro manteve-se tradicionalmente, durante séculos, com o longo rol de violência, de crueldade, de escravidão e de extermínio (leiam-se os textos de Bartolomé de las Casas e do Padre António Vieira). Também os judeus e cristãos-novos, no interior do próprio país, são alvo privilegiado de perseguições, por motivos religiosos, e continuamente acusados de provocar a peste, servindo de pretexto para inúmeros massacres. Uma prática que a História nos descreve ao longo dos séculos e que sobressaiu, pela sua extrema agressividade, na Rússia, entre 1880 e 1920, nos designados pogroms, termo que, aliás, se internacionalizou e se aplica à “Noite de Cristal”, em 1938, na Alemanha.

No século XIX, este preconceito racista adquiriu características de “cientificidade”, em nome de um progresso que mais não foi do que o testemunho da política expansionista e imperialista dos europeus contra os povos africanos, ameríndios e australianos, numa fome insaciável de território e de matérias-primas que, por vezes, determinou violentas acções de extermínio, palavra latina cujo verbo – exterminare – significa “expulsar, banir, exilar” e “rejeitar”, no seu sentido figurado. Assim aconteceu e acontece: expulso e exilado da sua terra, interrompendo a sua história que se torna outra por imposição do mais forte, não excluindo também o ser banido da vida, o Outro é rejeitado e destruído pelo Mesmo.

Genocídio é a palavra que pode associar-se a acções de extermínio, ainda que a palavra, rigorosamente, só tenha sido criada em 1944, pelo advogado judeu-polaco Raphael Lemkin, com o intuito de preencher o vazio jurídico que existia em relação a este crime, “planeado e dirigido por um Estado, no cumprimento de uma ideologia, no caso, profundamente racista, contra um grupo de pessoas”. No caso do Holocausto, o Estado foi a Alemanha, a vítima, decretada no seu extermínio e na sua identificação para melhor se diferençar dos outros, os judeus, e Hitler, “o homem cheio de futuro”, aquele “que massacra”. A sua avidez expansionista é bem visível no seu diário, Mein Kampf, publicado em 1924: “O direito ao solo e à terra pode tornar-se um dever, quando um grande povo parece destinado à ruína, por falta de território. […] para se tornar uma potência mundial, [a Alemanha] tem necessidade dessa grandeza territorial que lhe dará, no presente, a importância necessária e que dará aos seus cidadãos os meios para existir”. É ainda nessa obra que expõe o seu acérrimo anti-semitismo, de herança medieval, descrevendo os judeus como indesejáveis, como “uma peste moral, pior que a peste de antigamente, que, em certos lugares, infectava o povo”. Himmler, na peugada do dono, anuncia, em 1943, a vontade de exterminar os judeus, usando a metáfora arrepiante do “bacilo” que deve ser isolado e depois eliminado para não contaminar, adoecer e levar à morte os alemães. Em suma, o extermínio, apresentado irracionalmente como uma luta de sobrevivência dos alemães, e que se desenrolou em várias etapas, num processo de crueldade insuportável: expropriação, concentração, deportação e campos de extermínio.

Hoje, evoca-se o Dia do Holocausto, em memória dos cerca de 6 milhões de judeus mortos. Amanhã, dia 28, no Centro de Estudos Judiciários, no Largo do Limoeiro, pelas 18.00 horas, realiza-se o colóquio Singularidade do Holocausto no Contexto do Genocídio, intervindo Irene Pimentel, Maria Filomena Molder, Beata Cieszynska e Pedro Barbas Homem. Uma iniciativa conjunta da Fundação Aristides de Sousa Mendes e do Centro de Estudos Judiciários, com entrada livre.

1) Duarte Pacheco Pereira, in Esmeraldo de Situ Orbis (1505)

2) Carta do dominicano Tomaz Ortiz ao Conselho das Índias

Fundação Aristides de Sousa Mendes
 
 

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