A ciência de mal a pior

Quem estimulará os nossos filhos e netos a percorrer os caminhos da inovação?

Os resultados dos concursos de bolsas para doutoramento e pós-doutoramento atribuidas pela FCT (Fundação para a Ciência e Tecnologia) mostram bem o nível do desastre que se anunciava para a política de formação avançada em Portugal. Não admira.

Apelidada pomposamente no nosso país de “política científica”, certamente para deleite da paróquia e elevação da classe política, este importante ramo das políticas públicas carecia no entanto de uma característica essencial a qualquer política de formação: a estabilidade ou, como agora se diz, a sustentabilidade. Porquê? Porque o seu suporte provinha essencialmente de fundos comunitários e não de fundos próprios nacionais. Ou seja, dependia fundamentalmente da existência, volume e prioridades dessa fonte de financiamento externo. Não custa pois a compreender. Nem o desastre que mais cedo ou mais tarde estava anunciado.

Um programa coerente e eficaz de formação avançada precisa naturalmente de uma perspectiva de longo prazo, que só poderá ser encontrada no quadro de um sistema científico e tecnológico bem estruturado e a funcionar, suportado pelos sectores público e privado, ou então no âmbito de instituições auto-sustentadas como as fundações filantrópicas privadas, das quais a Fundação Calouste Gulbenkian é um exemplo.

Ora, em Portugal, continua a existir uma desarticulação fatal entre as instituições académicas, os laboratórios nacionais e as entidades empresariais, isto é, o sistema científico e tecnológico nacional encontra-se num estado de completa disfuncionalidade. E qual é o objectivo principal da política científica (e tecnológica) nos países desenvolvidos que a praticam? É, precisamente, a orientação e financiamento da transferência de pessoas e conhecimentos do sector académico e dos grandes laboratórios para as empresas e agentes económicos – note-se bem, a transferência entre sectores e não a formação avançada de cientistas.

A pretensa afirmação de que desde meados da década de 1990 Portugal possuía uma política científica esclarecida serviu sobretudo para mascarar a insuficiência do sistema e a incapacidade e desinteresse em reorganizá-lo e pô-lo a funcionar em rede. A partir daí a singularidade da política científica à portuguesa exacerbou-se: não só se enquistou na formação avançada com base em fundos comunitários (a tentação de lhes chamar “tóxicos” é enorme) como se concentrou na produção de bons indicadores de ciência. E porquê esta obsessão com bons indicadores? Principalmente para os governantes nacionais poderem mostrar que o país era um parceiro igual para entrar nas aventuras europeias, nomeadamente no euro.

Claro que conceder bolsas a jovens inteligentes, vivos e capazes é rápido, fácil, barato e produz resultados no curto prazo. As taxas de crescimento do número de doutorados em Portugal subiram quase logo para o topo dos rankings europeus e o número de investigadores na população activa atingiu a média europeia. Porém, ninguém veio esclarecer que havia uma colossal diferença: é que nos países desenvolvidos da Europa a maioria dos cientistas trabalha no sector empresarial, enquanto que os cientistas portugueses se encontram sobretudo como bolseiros em instituições académicas.

Quer isto dizer que a ciência portuguesa não entra pela economia adentro e que, aparte os media, ninguém a sente. Não admira, por isso, que nenhum grande grupo económico ou financeiro, nenhuma grande empresa ou entidade pública, nem a COTEC (a associação empresarial para a inovação) tenha protestado contra esta catástrofe. Apenas os investigadores, sozinhos, abandonados ao seu desespero, vendo o futuro de rosa passar a negro, vociferam contra o descalabro das políticas públicas. E é neste contexto que vemos os responsáveis afirmar que "é preciso que a ciência dependa menos do Orçamento do Estado". É caso para se clamar por misericórdia! Muitos têm optado por rumar para outras águas, com o desperdício evidente para o país de talentos e de entusiasmo. Se só restarem os que se conformam, que universidades iremos ter daqui por uma geração? Quem estimulará os nossos filhos e netos a percorrer os caminhos do empreendedorismo e da inovação?

Há pois que ter a coragem de recusar a alternativa que consiste na pretensa inexistência de alternativas para se sair desta situação. É preciso expressar a nossa total rejeição desta quebra absoluta de expectativas que atinge uma população jovem, capaz, trabalhadora e que gosta de interrogar o mundo em que vive. E é preciso forçar aqueles que nos governam a não preferir soluções “expeditas” que afectem o ânimo de toda uma geração. Temos de os obrigar a tornar explícito qual o tamanho da fatia do bolo que entendem dever ser atribuido à formação continuada de cientistas e investigadores. Só assim perceberemos as motivações que lhes vão na alma. Só assim os autorizaremos a pedir o restabelecimento da nossa confiança.

Físico
 
 
 

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