Deselegâncias, prepotências e mediocridades

Estaria em causa a honra e consideração de homem sério do juiz?

Para o Ministério Público, o direito à liberdade de expressão, previsto no art.º 37.º da Constituição, não podia sobrepor-se ao direito ao bom-nome e reputação, igualmente consagrado na Constituição, pelo que o dr. Jorge, ilustre advogado nortenho, devia ser levado a julgamento.

O dr. Jorge, insatisfeito com alguns despachos proferidos pelo juiz num processo em que era advogado, redigira uma peça processual dirigida ao Tribunal da Relação do Porto, num tom algo violento para os costumes locais.

Ao longo da sua peça, o dr. Jorge escrevera, entre outras coisas, o seguinte, considerado ofensivo pelo Ministério Público: "a decisão da qual se interpôs recurso começa por conter uma decisão que se destaca pela sua incivilidade"; "Numa decisão, à semelhança de quase todas as proferidas até ao momento (...), muito infeliz, a realização da perícia (...) foi indeferida pelo Tribunal com o pouco educado, pouco delicado e ostensivamente incorrecto argumento ..."; "Tratou-se de uma fundamentação profundamente deselegante"; "o escolhido pelo magistrado é um infeliz acto de desnecessária prepotência e incivilidade"; "tão infeliz decisão"; "um despacho com enormes deficiências jurídicas"; "falta de qualidade das decisões anteriores"; "o despacho que indefere o recurso é mais uma, numa já vasta colecção, decisão assustadoramente medíocre proferida pelo juiz 'a quo'"; "para além da desadequada, deselegante argumentação".

O juiz sentiu-se “humilhado e ofendido” com as expressões utilizadas pelo dr. Jorge e apresentou participação criminal contra este pela prática do crime de difamação. Findo o inquérito, o magistrado do Ministério Público considerou que as expressões utilizadas pelo advogado tinham visado “denegrir a pessoa do juiz, na sua honra e consideração de homem sério, honesto e trabalhador, querendo igualmente atingi-lo (conseguindo-o), no seu brio e imparcialidade e honestidade intelectual”. Um crime que, não podendo ser lavado com sangue, exigia, no mínimo, a imolação do advogado no altar da justiça...

Mas assim não entendeu o juiz de instrução que lembrou, em primeiro lugar, que o queixoso, como juiz de Direito, “pertence reconhecidamente a uma elite social e profissional, beneficiando a priori de uma presunção de idoneidade e competência que não é, nem pode ser, beliscada por algumas afirmações manifestamente exageradas feitas pelos advogados no calor da lide judiciária”. Por outro lado, considerou o juiz de instrução que o contexto dessas afirmações e juízos não indiciava qualquer vontade de ofender ou difamar, “mas antes um interesse ou vontade em criticar uma decisão considerada injusta, no intuito de defesa de um interesse próprio ou de terceiro”. E embora considerando que a actuação do dr. Jorge podia “merecer alguma censura, por ter violado um dever de urbanidade”, concluiu que não devia ser considerada penalmente ilícita e punível, por não ter produzido qualquer lesão grave e relevante na reputação e consideração social do juiz em causa. Os juízos que o dr. Jorge formulara não se referiam directamente ao juiz, mas apenas às decisões que este havia tomado num determinado processo, pelo que a actuação do dr. Jorge podia, efectivamente, “encontrar justificação no exercício do direito à liberdade de expressão como advogado na defesa dos interesses da sua constituinte”.

Inconformados, o Ministério Público e o juiz visado recorreram para o Tribunal da Relação do Porto (TRP) que, no passado dia 11 de Dezembro de 2013, pelo teclado dos desembargadores Pedro Vaz Pato e Eduarda de Pinto e Porto, colocou um ponto final na questão.

Consideraram os juízes desembargadores “perfeitamente compreensível” a indignação do dr. Jorge perante o indeferimento de um requerimento e a  condenação em custas, podendo  “a decisão (do juiz) ser qualificada de injusta e contrária ao bom senso”. Mas, por outro lado, não deixaram de considerar, também, que as expressões utilizadas eram “manifestamente exageradas e descorteses” e poderiam configurar a violação dos deveres deontológicos de urbanidade e correcção.

Contudo, o essencial era saber se o advogado teria ou não cometido um crime ao fazer as afirmações em causa. E nesse sentido, o TRP considerou que não se justificava levar o dr. Jorge a julgamento pelo crime de difamação, já que “uma decisão determinada, tal como uma actuação determinada, podem, em si mesmas, revelar falta de sentido de justiça e falta de bom senso, como podem revelar prepotência, incivilidade, deselegância ou falta de educação, e podem ser criticadas por isso, sem que isso represente um juízo sobre a personalidade do seu autor”.

Prevaleceu, assim, a liberdade de expressão neste embate com o serôdio mundo dos que procuram abafar o que não seja servilismo e bajulice nos tribunais, alimentando o mundo do “respeitinho é muito bonito”. Triste papel, o do Ministério Público neste caso...

Advogado
 

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