Um cortejo fúnebre pela ciência

Cerca de mil pessoas manifestaram-se contra as políticas da Fundação para a Ciência e a Tecnologia em Lisboa. Polícia impediu candidatos a bolsas de entrarem na Loja do Cientista, na sede da fundação.

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Os cientistas queixam-se das condições precárias de trabalho Daniel Rocha
A manifestação representou um cortejo fúnebre pela "morte" da ciência
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A manifestação representou um cortejo fúnebre pela "morte" da ciência Daniel Rocha
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A manifestação representou um cortejo fúnebre pela "morte" da ciência Daniel Rocha
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Crítica aos cortes nas bolsas Daniel Rocha
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Associações de estudantes das universidades também estiveram presentes Daniel Rocha

Gritos, assobios, berros. Já passava das 17h quando os bolseiros, candidatos bolseiros e elementos da comunidade científica fizeram-se ouvir nesta terça-feira na Avenida Carlos I em Lisboa, em frente à sede da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT). “Bolseiros em luta, Crato para a rua”, “Incompetência está aí, excelência está aqui” ou “Demissão! Demissão!” eram algumas das frases escolhidas. Por esta altura, já os chapéus-de-chuva estavam guardados e parte das cerca dos mil manifestantes estava a ir-se embora da manifestação marcada pela Associação dos Bolseiros de Investigação Científica (ABIC), depois da divulgação na última quarta-feira dos cortes nas bolsas individuais de doutoramento e de pós-doutoramento da FCT.

Mas o momento de tensão ainda estava para vir, quando um membro da ABIC pediu aos candidatos que não ganharam bolsas para entrar na Loja do Cientista, na FCT, e pedir as actas de avaliação das candidaturas, para solicitarem uma audição. Nesse momento, quando dezenas de candidatos se dirigiram à loja, caminhando pelo passeio junto à sede da fundação, cerca de uma dezena de polícias bloqueou-lhes a passagem. Pouco após as 17h30, depois do fecho da Loja do Cientista, os cerca de 200 manifestantes que restavam desmobilizaram. A mensagem estava dada.

“Eles perceberam que não vamos ficar calados”, disse Maria Dávila, bolseira de doutoramento da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH) da Universidade Nova de Lisboa e que pertence à ABIC. “Isto não é comportável, esta gente que está aqui não tem outra forma de sustento”, explicou aos jornalistas. No concurso individual de doutoramento e pós-doutoramento, 5190 pessoas não obtiveram financiamento. “Para o ano serão mais”, avisa Maria Dávila, quando a concentração de pessoas já se tinha dirigido para uma rua ao lado, perto da residência oficial do primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho.

A manifestação tinha-se iniciado no passeio oposto à sede da FCT. Passavam poucos minutos das 15h, já uma pequena multidão estava aglomerada, chapéus-de-chuva abertos, chuva sem parar.

“Desde a década de 1990 que a FCT investiu mais de um milhão de euros em mim, entre projectos e bolsas”, desabafa Francisco Moreira, professor e investigador na área da conservação da natureza no Instituto Superior de Agronomia (ISA), em Lisboa. “Ainda tenho uma bolsa até Maio, graças a projectos a que me candidatei. Depois disso, não sei”, diz este pós-doutorado com 48 anos, a trabalhar no ISA desde 1997, onde coordena um grupo de investigação de dez a 15 pessoas. “O que o nosso ministro nos manda é sair do país. É muito triste, estas pessoas ou ficam sem dinheiro ou vão mostrar as suas competências ao serviço de outro país.”

Ao seu lado, Ana Isabel Queiroz, professora na FCSH, que ganhou este ano uma bolsa do concurso Investigador FCT na área da história, desconstrói a exaltação da “excelência” que se tem ouvido por parte dos responsáveis do Ministério da Ciência: “As pessoas foram apoiadas no passado porque foram respondendo ao que lhes era pedido, foram produzindo. Não deixaram de ser excelentes de um momento para o outro.”

Rui Rebelo, professor de biologia da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, está ali pelos seus alunos: “Como professor, deixei de me sentir confortável em dizer aos meus alunos para seguirem uma carreira científica. É virtualmente impossível seguir o processo normal de licenciatura, doutoramento, pós-doutoramento.”

A ABIC apresentou ainda em 2013 uma petição com mais de 5000 subscritores para se discutir na Assembleia da República os cortes na ciência e a carreira científica. “Só por causa destes concursos [das bolsas], mais de 5000 pessoas deixaram de ter capacidade de continuar as suas linhas de investigação”, disse ao microfone André Janeco, da presidência da ABIC. A petição será discutida a 29 de Janeiro, “onde haverá uma nova iniciativa da ABIC para marcar o dia”, diz-nos depois o bolseiro do Instituto Superior Técnico.

Quando a manifestação seguiu até à residência do primeiro-ministro, parecia um cortejo fúnebre tapado centenas de guarda-chuvas. Quatro figuras cobertas por um manto preto como a morte – e a cara tapada com as fotografias de Pedro Passos Coelho, Nuno Crato (ministro da Educação e Ciência), Leonor Parreira (secretária de Estado da Ciência) e Miguel Seabra (presidente da FCT) – levavam um caixão de madeira. Na parte de cima, tapada por um plástico preto, lia-se: “Aqui jaz a ciência.”

A meio da subida encontramos Ana Margarida Esteves, 38 anos. A investigadora não ganhou uma bolsa de pós-doutoramento, para ser feito no ISCTE, em Lisboa, sobre cidadania activa, desenvolvimento sustentável e economia social e solidária. A notícia foi um balde de água fria para esta cientista social que fez o doutoramento lá fora. “Durante a investigação que fiz, percebi que se ficasse mais tempo nos Estados Unidos estaria a contribuir para o status quo que está a enterrar Portugal e não queria ser cúmplice”, explica. Por isso, voltou e candidatou-se. “A avaliação que a FCT fez teve erros crassos, com critérios que nada tinham que ver com o projecto”, desabafa, acrescentando que ainda não sabe o que vai fazer agora.

“Esta manifestação é para dar um sinal claro e inequívoco de que esta situação não pode continuar”, diz Joana Campos, do grupo dos bolseiros da associação Precários Inflexíveis (PI). “A política de investigação promovida pelo Governo não tem aceitação na comunidade científica, os cortes aplicados pelo Governo estão a dar cabo de toda a investigação construída durante décadas.”

De 2012 para 2013, houve uma redução de cerca de 65% de bolsas de pós-doutoramento atribuídas e de 40% de doutoramento, tendo em conta, nestas últimas bolsas, os novos programas doutorais da FCT.

Para a ABIC, os resultados das bolsas são “uma razia” e mostram uma “política de desinvestimento e de abdicação de defesa dos interesses nacionais em detrimento das opções ditadas em esferas internacionais”. À concentração uniram-se outras organizações como os PI e a Plataforma em Defesa da Ciência e do Emprego Científico. Associações de estudantes de algumas universidades como a Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa e do ISCTE também se associaram ao protesto. Investigadores do Instituto de Biologia Molecular e Celular, um laboratório associado do Porto, estavam presentes. Do Porto, Coimbra e Aveiro vieram entre 170 e 180 pessoas, de acordo com a ABIC.

Desde a última quarta-feira, várias personalidades do mundo científico, como Alexandre Quintanilha, Carlos Fiolhais, Manuel Sobrinho Simões, Diogo Ramada Curto, Miguel Soares, António Costa Pinto, criticaram as políticas científicas do actual Governo. Alexandre Quintanilha, professor da Universidade do Porto e secretário do Conselho dos Laboratórios Associados (uma rede de 26 laboratórios espalhada pelo país), referiu mesmo: “Se a comunidade científica não perceber nesta altura que isto é um ataque geral à grande maioria dos investigadores no país e se não se unir para ver se consegue alterar esta situação, então teremos aquilo que merecemos”, disse, citado pela agência Lusa.

No PÚBLICO, uma carta aberta dirigida a Nuno Crato, ministro da Educação, Ciência e Ensino Superior, Manuel Sobrinho Simões, Diogo Ramada Curto e António Costa Pinto, três investigadores e professores, dizem que “os critérios e os processos de avaliação dos concursos da Fundação para a FCT têm-se revelado pouco claros e transparentes”. Acrescentam: “Sobretudo, a avaliação dos concursos de 2013 causou situações de uma injustiça gritante que urge resolver. As constantes mudanças de regulamentos, a falta de planificação, as permanentes alterações dos prazos, e a confusão burocrática anexa, caracterizam infelizmente os programas que têm sido lançados, ao que acresce o perigo de regresso a um modelo clientelar e não meritocrático de avaliação pelos pares”.

Nesta terça-feira, a Lusa noticiou que foi chumbado o requerimento do PCP para a audição de Nuno Crato e de Leonor Parreira na Comissão Parlamentar de Educação, Ciência e Cultura sobre o concurso de bolsas individuais de doutoramento e pós-doutoramento. Mas a requisição do Bloco de Esquerda para uma audição de Miguel Seabra, na mesma comissão, foi aceite.
 
 

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