Assad até pode não ter dito que fica no poder mas é com isso que conta

Genebra II pode servir para alguma coisa – negociar um cessar-fogo no Norte e entrada de ajuda em zonas cercadas – mas dificilmente servirá o seu objectivo inicial: pôr em marcha um governo de transição.

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O bairro de Ansari, em Alepo, depois de um ataque aéreo do regime, este domingo Ammar Abdullah/Reuters

Interessa pouco se Bashar al-Assad disse ou não que não vai à conferência de Genebra para deixar o poder – já sabíamos isso. A conferência, dita de paz, conhecida como Genebra II e marcada para começar na quarta-feira na cidade suíça de Montreaux, sempre serviu fins diferentes, dependendo da parte ouvida, e já poucos acreditam que dela possa sair realmente a paz. O que não quer dizer que o encontro não assinale o início de um longo processo de diálogo ou que não sirva para salvar algumas vidas.

“Se eu me quisesse render tê-lo-ia feito no princípio.” Segundo a agência russa Interfax, Assad disse estas palavras ao primeiro-ministro russo, Dmitri Medvedev, que esteve domingo em Damasco. Pouco depois, a presidência desmentiu que Assad tivesse dito o que a Interfax lhe atribuía. O desmentido estava feito, a mensagem, essa, também já tinha passado.

Assad aceitou participar em Genebra quando Genebra passou a querer dizer que ele e o seu regime eram legítimos, mesmo se os Estados Unidos ainda insistem que a conferência tem os objectivos que sempre teve, mesmo se o Reino Unido repetiu ainda este domingo que qualquer acordo exigirá a partida de Assad. O Presidente sírio acabará por deixar o poder, sim, mas provavelmente fá-lo-á como quer, com eleições às quais não se apresentará e que servirão para preservar parcialmente o regime que hoje lidera.

“A Administração Obama limitou a sua política a dois esforços principais: a erradicação das armas químicas sírias e a organização da conferência de paz marcada para esta semana. Ambas precisam da cooperação de Assad para acontecerem”, resume o jornal The Washington Post. Actualmente, escreve o diário, a política norte-americana “admite tacitamente o que é óbvio desde há muito: o Presidente Assad vai permanecer no poder, pelo menos por algum tempo”.

Genebra II vai mesmo acontecer. Começa na quarta-feira em Montreaux, na presença de 30 países convidados e, muito provavelmente, sem o Irão, o que equivale a dizer sem grandes probabilidades de resultados sérios na discussão de uma transição. Dois dias depois, as conversas seguirão mesmo em Genebra, já só com o enviado da ONU e da Liga Árabe, Lakhdar Brahimi, o regime e os opositores que decidiram participar. Admite-se que alguns países mantenham delegações por perto e não é de excluir completamente que os iranianos ainda encontrem alguma forma de participar.

Congratulando-se com a decisão da Coligação Nacional Síria, o maior grupo da oposição no exilio, que sábado aprovou o envio de uma delegação à Suíça após um longo debate e muitas pressões dos países que a apoiam, o secretário-geral da ONU relembrou os objectivo oficiais da conferência que tem por missão organizar. “Chegar a um acordo entre as diferentes partes sírias sobre a plena aplicação do comunicado de Genebra de 30 de Junho de 2012 e chegar a uma transição política que ponha fim ao sofrimento do povo sírio”, disse Ban Ki-moon.

Eliminar o terrorismo
Se foi tão difícil para a oposição síria aceitar participar na conferência isso aconteceu precisamente porque os opositores entenderam que, ao fazê-lo, estavam a legitimar Assad, após três anos em que EUA, UE, Turquia e países árabes repetiram incessantemente que ele tinha de sair. Agora, mesmo que ninguém o admita, os objectivos são mais modestos e passam por permitir o acesso de ajuda aos que mais necessitam dela dentro da Síria e combater a ameaça do terrorismo.

E foi o próprio Assad que o disse, também domingo, também citado pela Interfax: a delegação síria, explicou, vai à Suíça “em primeiro lugar” trabalhar para a “eliminação do terrorismo” na Síria – a afirmação tem outro peso depois das notícias que dão conta de contactos entre os serviços secretos europeus e sírios nos últimos meses, precisamente sobre a presença de jihadistas estrangeiros, incluindo europeus, na Síria. Bem diferente do que disse o presidente da Coligação Nacional, Ahmad Jarb, na véspera, lembrando que estas negociações têm “como objectivo único satisfazer as exigências do revolução e antes de tudo retirar ao carniceiro todos os seus poderes”.

É o elefante na sala. Toda a gente sabe que Genebra II não é aquilo que diz ser. Ao regime, às vezes, a boca foge-lhe para a verdade.

O secretário de Estado norte-americano, John Kerry, insiste em manter-se optimista. “Ninguém teria acreditado que Assad ia abdicar das suas armas químicas. Mas ele fez isso. E fê-lo porque os seus patronos entenderam que ele tinha de o fazer”, disse. Entre os países ocidentais, a reacção mais sincera à decisão da oposição chegou provavelmente da Alemanha, onde o Governo falou de “um pequeno raio de esperança”, admitindo que “o menor progresso sobre a passagem de colunas humanitárias ou acordos de cessar-fogo a nível local seria um sucesso”.

Visão realista
É a “abordagem realista” de que fala o Irão. “A conferência poderá abrir o caminho para uma solução política se adoptar uma visão realista da crise na Síria”, afirmou em Teerão o vice-ministro dos Negócios Estrangeiros, Hossein Amir-Abollahian, citado pelo site da emissora Irib. Defendendo que “a solução democrática vai manifestar-se pelo voto dos sírios”, Amir-Abollahian disse ainda que as decisões tomadas na Suíça “não devem conduzir ao reforço dos movimentos extremistas na Síria”.

Assad tanto disse que o seu combate era contra “terroristas” que a mensagem acabou por passar. Sim, hoje há terrorismo na Síria, e são os sírios, muitos deles os mesmos que se manifestaram contra Assad, as suas principais vítimas. Os extremistas estrangeiros que acudiram ao país com os seus próprios objectivos nos últimos anos tanto mal espalharam que muitos rebeldes sírios decidiram que eram mais importante combatê-los a eles do que ao regime. Desde o início do mês, essas batalhas, no Norte do país, já fizeram mais de mil mortos.

Domingo, o Estado Islâmico do Iraque e do Levante (ISIS, a Al-Qaeda na Síria) apelou aos rebeldes sírios para se concentrarem de novo no combate ao regime. “O Estado pede-vos que parem de nos combater”, diz Abu Bakq al-Baghdadi, que se apresente como chefe da organização, numa mensagem áudio publicada em fóruns usados por grupos jihadistas. Pedindo aos seus combatentes que “perdoem os rebeldes” que os “atraiçoaram pelas costas”, pede-lhes igualmente que se concentrem “no inimigo, o inimigo do povo sunita”. Assad, membro da minoria aluaita (um ramo do xiismo), quis fazer da revolta síria um conflito sectário, também nisso os extremistas estrangeiros o ajudaram.

Pressionado por Moscovo, o regime sírio ofereceu-se para discutir antes ou durante Genebra um cessar-fogo na região de Alepo, a grande cidade de dois milhões no Norte do país, devastada por meses e meses de batalhas. Talvez o assunto esteja mesmo aberto a discussão mas, para já, e para que não haja dúvidas sobre quem manda, as bombas que mataram 16 pessoas no sábado ainda não pararam de cair sobre a cidade.
 
 
 
 

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