Obras feitas sem licença foram legalizadas por causa de centro de noite que nunca existiu

O licenciamento municipal do Hospital de S. Martinho só foi possível graças a uma mentira: a criação no edifício de um centro de noite para idosos pobres, gerido pela paróquia. O número de pisos passou de quatro para sete e as taxas a pagar caíram para metade. O centro nunca foi criado.

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Agostinho Branquinho era consultor da PMV e colaborou no lançamento do hospital Raquel Esperança

Três dos sete pisos do Hospital de S. Martinho (HSM) foram construídos ilegalmente, violando a licença emitida pela Câmara de Valongo em 2004, que apenas permitia a construção dos quatro primeiros. A legalização do edifício e a redução para metade do valor das taxas devidas à autarquia foram conseguidas no final de 2007. Motivo: a declaração do interesse público municipal do hospital, com base em pressupostos que a empresa de que Agostinho Branquinho era consultor nunca cumpriu.

 Para ultrapassar as restrições impostas pelo Plano Director Municipal (PDM), que não autorizava a construção de mais do que quatro pisos naquele local da freguesia de São Martinho do Campo, a PMV, empresa proprietária do HSM, requereu à câmara, ainda em 2004, a declaração do interesse público municipal do hospital que já estava a construir com sete pisos.

A fundamentação do requerimento residia no destino a dar aos pisos superiores: a instalação de um centro de noite para idosos carenciados, que seria gerido pela paróquia de São Martinho do Campo, conforme protocolo alegadamente já celebrado. A câmara, que até dois anos antes tinha tido como vice-presidente o actual porta-voz e coordenador nacional do PSD, Marco António Costa, aprovou o pedido em Maio de 2005.

O Centro de Noite para idosos, porém, nunca foi criado. E o pároco de São Martinho do Campo garantiu ao PÚBLICO que nunca assinou qualquer protocolo com os promotores do hospital.

A licença de obras inicial, emitida em Janeiro de 2004, previa a adaptação de um antigo edifício industrial, com quatro pisos, por forma a poder receber uma policlínica no rés-do-chão e no primeiro andar. Os dois pisos de cima ficariam em open space para escritórios ou ampliação da policlínica. O imóvel acabou por ser integralmente demolido e a nova construção, em vez dos quatro pisos que tinham sido autorizados, ficou praticamente pronta em Outubro de 2006 com os sete que hoje possui.

Câmara fechou os olhos
Os dirigentes dos serviços de Urbanismo e vereadores da Câmara de Valongo é que não deram por nada. A tal ponto que no dia 9 de Novembro os engenheiros e outros técnicos que fizeram a vistoria à obra, na sequência do pedido de licença de utilização apresentado pela PMV na véspera, concluíram que estava tudo conforme com as normas legais e os projectos aprovados.

Além de não repararem que o imóvel tinha três pisos que não estavam no projecto, nem sequer lhes chamou a atenção o facto de ele ter o dobro da altura dos prédios vizinhos.

Nesse mesmo dia, contudo, um outro técnico camarário que não participara na vistoria subscreveu uma informação relativa ao pedido da licença, frisando que até essa data não tinham sido cumpridas várias condicionantes impostas pelo município à realização da obra. Apesar disso, e omitindo tal facto, alguém que não assinou o que escreveu propôs ainda no mesmo dia, logo por baixo da informação citada, a concessão da licença, invocando as conclusões dos peritos que tinham acabado de vistoriar o edifício.

Antes do final desse dia, o director do serviço concordou com a proposta, sendo a licença passada no dia seguinte.

Antecipando-se a esta corrida contra-relógio, o administrador da PMV, Joaquim Teixeira, tinha dado dois anos antes o primeiro passo para que os sete pisos então em construção viessem a ser susceptíveis de legalização, caso a Câmara de Valongo estivesse, como esteve, pelos ajustes.

Em Setembro de 2004 escreveu uma carta ao presidente da autarquia, o social-democrata Fernando Melo, requerendo a declaração do interesse público municipal do imóvel que estava em obras. Conforme o PDM admite, a título excepcional, essa declaração permitir-lhe-ia aumentar o índice de construção quase para o dobro.

A justificar o pedido, Teixeira declarou que pretendia criar um centro de noite nas instalações da futura policlínica  — era uma policlínica e não um hospital que o projecto aprovado previa. Este centro foi definido pelo empresário  como “um serviço social e comunitário” que seria prestado “à população idosa mais desprotegida e socialmente desfavorecida” do concelho.

O futuro serviço, explicou na carta, asseguraria “acolhimento e alojamento durante a noite, proporcionando condições que permitam a higiene pessoal e assegurem ceia e o pequeno-almoço, em regra para cerca de 20 pessoas”. Além disso, garantiu, seria gerido pelo Centro Paroquial e Social de São Martinho do Campo, nos termos de uma parceria “já estabelecida”.

O interesse público
Em resposta a um pedido de parecer de Fernando Melo sobre o assunto, a vereadora Trindade Vale — que substituíra Marco António Costa quando este foi ocupar o lugar de deputado e depois integrar o Governo de Santana Lopes — remeteu o assunto para apreciação no Departamento de Acção Social. Mas no despacho que então proferiu declarou, desde logo, que “esta policlínica será uma óptima resposta” aos “casos urgentes”.

O parecer depois emitido pela Acção Social considera que o Centro de Noite prometido “resulta do estabelecimento de uma parceria com o Centro Paroquial e Social de São Martinho do Campo” e “poderá ser uma resposta aos problemas concelhios” na área do apoio a idosos. E foi com base nele que Fernando Melo fez aprovar, em Maio  de 2005, com as abstenções dos vereadores socialistas, a declaração de utilidade pública municipal do empreendimento.

No termo do ano seguinte, o essencial das obras ficou concluído. Não com os quatro pisos aprovados, mas com sete, sendo emitida como já se viu a respectiva licença de utilização. Graças a ela foi transferida para os dois pisos inferiores, ainda que sem autorização da Administração Regional de Saúde, uma das policlínicas que a empresa tinha a funcionar noutro local.

A declaração de utilidade pública municipal acabou por servir, já no fim de Setembro de 2007, para fundamentar o pedido de licenciamento das “obras de ampliação” de quatro para sete pisos — na realidade já feitas sem licença.

O projecto de arquitectura da obra já concluída — que contemplava pela primeira vez um hospital e foi apresentado como um “projecto de ampliação” — não previa quaisquer espaços para o Centro de Noite e foi aprovado a 9 de Outubro. Justificação: o artigo do PDM que permite a quase duplicação do índice de construção em obras declaradas de utilidade pública municipal, como era o caso.

O padre e o deputado
No início de Novembro, Joaquim Teixeira, mais uma vez com base na utilidade pública da obra, solicitou a redução das taxas devidas à câmara. Deferido o pedido, a empresa conseguiu pagar 36.855 euros em vez de 73.711.

Durante esse mês foram ainda entregues os projectos de especialidade. E o alvará de obras de ampliação, sem o qual os três pisos superiores não podiam ter sido construídos, foi emitido por Fernando Melo a 10 de Dezembro, com um prazo de conclusão até 11 de Junho de 2008.

De acordo com o que o director técnico da obra fez constar no registo arquivado na autarquia, os trabalhos foram iniciados no próprio dia 10 com a “limpeza dos espaços”. Na página seguinte escreveu que os mesmos terminaram logo no dia 19 com a “limpeza final das instalações” e “em conformidade com o projecto aprovado”.

Nesse mesmo dia, a PMV requereu a licença de utilização e passados dois dias, a 21 de Dezembro, foi efectuada a vistoria. Os peritos camarários concluíram então que estavam reunidas as condições para a emissão da licença.

Ainda a 21, a proposta recebeu a concordância do director de departamento. Finalmente, no termo de mais um contra-relógio e sem esperar pelo dia seguinte, o presidente da câmara assinou a licença sem a qual a PMV não podia requerer ao Ministério da Saúde o licenciamento da actividade hospitalar.

O actual presidente da Câmara de Valongo, o socialista José Manuel Ribeiro, eleito em Setembro, não se quis pronunciar sobre os procedimentos camarários neste caso por não se recordar dele. Mas afirmou que “nessa altura era normal utilizar todos os artifícios para contornar os índices máximos do PDM”.

No final de Maio de 2008 o hospital foi oficialmente inaugurado. O Centro de Noite, porém, tinha caído no esquecimento.

Contactado pelo PÚBLICO, o pároco e responsável pelo Centro Paroquial e Social de São Martinho do Campo, José Macedo, afirmou que a criação dessa valência “foi aventada, mas não se concretizou”. De acordo com o sacerdote, houve apenas “conversas” entre ele e Joaquim Teixeira, sem que alguma vez tenha sido assinado qualquer acordo.

“O meu interlocutor era o senhor Teixeira, mas depois entraram outras pessoas, nomeadamente o senhor deputado Branquinho, e eu coloquei-me à margem, porque as coisas tomaram logo outra orientação”, afirma o pároco. Sem esclarecer que orientação foi essa e sem saber precisar a data em que o então deputado entrou no processo, José Macedo atribui-lhe abertamente o abandono da ideia do Centro de Noite.

Confrontado com o facto de o nome do centro paroquial ter sido usado para conseguir a quase duplicação da área de construção do hospital e a redução das taxas a pagar para metade, o pároco respondeu: “Estou a ouvir falar nisso pela primeira vez.” Branquinho nada respondeu às perguntas do PÚBLICO sobre o licenciamento da obra.
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 

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