Editorial: A prioridade perdida

O Governo quer tornar a ciência mais competitiva, retirando-lhe as bases para ela poder competir

Até à chegada de Mariano Gago ao poder, em 1995, e das políticas que então começou a implementar terem produzido resultados, a ideia de que Portugal algum dia viesse a ter uma política científica digna do nome pertencia ao domínio do impensável.

 Ao longo de quase duas décadas (e mantendo-se uma continuidade de políticas, apesar da alternância de partidos no poder), houve investimento e talento para construir um edifício que hoje pode estar em risco.

Há algumas décadas, contavam-se pelos dedos os cientistas portugueses que estavam lá fora. Agora, exportamos cérebros e investigadores qualificados, que o país não consegue enquadrar.

Começou a diminuir o investimento público em ciência, quando estamos a afastar-nos da meta dos 3% do PIB que a própria FCT diz querer alcançar no futuro.

E não há só um problema de crise. Há um problema ideológico em relação à ciência. O Governo, como explica o presidente da FCT, Miguel Seabra, em entrevista publicada no dossier que hoje dedicamos à crise na ciência, quer que a investigação dependa cada vez menos do Orçamento do Estado e defende uma cultura de exigência contra a comodidade dos apoios garantidos.

Esta ideologia da competitividade contra o peso excessivo do Estado acaba no entanto por ser um tiro no pé da própria competitividade do país no futuro, para o qual a ciência é pura e simplesmente decisiva.

A excelência não nasce nas árvores, é o resultado de um trabalho contínuo e implica uma base quantitativa. Isso, aliás, a política dos últimos anos já demonstrou, com resultados concretos. A competitividade enquanto miragem ideológica começa por penalizar as condições para a ciência portuguesa poder competir. Fortalece-se a ideia de que só os investigadores que obtêm resultados devem ser apoiados.

O liberalismo, enquanto doutrina, transforma-se no supremo estatismo, ao subordinar a liberdade de investigar a uma ideia vaga de produtividade, como se estivéssemos na União Soviética. O enjoo perante o “peso do Estado” deste Governo não tem tradução prática. O que ouvimos no discurso, duríssimo, dos investigadores, são as críticas à falta de regras e à burocracia em excesso. Reduzir o peso do Estado é começar por limar o funcionamento do Estado e torná-lo eficaz, não é cortar despesa.

Esperava-se do Governo uma política estruturada para a ciência, com metas, objectivos e prioridades, que fosse além da vulgata ideológica. Esperava-se do Governo a percepção de que há sectores onde é preciso investir para garantir uma porta de saída para a crise. É preciso mais investimento e mais eficácia, em vez de desinvestir e pôr em causa uma política que ao longo de duas décadas deu resultados. Em tempo de crise, a ciência, que não é assim tão cara, devia ser uma prioridade para um país que deseja a ousadia de ter um futuro.
 
 
 
 
 

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