Canções de um jazz nascido em Cabo Verde

A cantora Carmen Souza dá a ouvir esta sexta-feira e sábado (Lisboa e Viseu) a síntese entre a música cabo-verdiana e o jazz de que vivem as suas criações.

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Carmen Souza

Não é apenas por se tratar de uma referência imediata à sua cultura de origem que Carmen Souza chamou ao seu quinto álbum Kachupada . Tudo aquilo que há de social, de partilha e de celebração colectiva no mais típico exemplo da gastronomia cabo-verdiana é igualmente aplicável à sua música.

Essa música que começou a desenvolver desde que, aos 17 anos, se cruzou com o baixista Theo Pas’Cal em Lisboa, numa feliz adulteração jazzística das tradições de Cabo Verde, implica os restantes músicos nessa ideia de que a sua intervenção não é muito diferente de estar em grupo, à mesa. “Toda a gente tem de falar e dizer do seu sentimento”, explica a cantora. Por isso, embora as composições sejam de Souza e Pascal, cada um está obrigado a participar, a abrir a boca e opinar, e a trazer outros mundos para esta ideia de “celebração, festa, conversa, momentos familiares a que a cachupa está sempre ligada”.

Nascida em Lisboa em 1981, Carmen Souza começaria por cantar gospel. Aos poucos, foi refinando essa mistura de línguas de casa e da rua, os ritmos cabo-verdianos e as harmonias do jazz: “São dois mundos tão diferentes, o jazz com um lado muito complexo, Cabo Verde com um mundo muito simples, que é uma harmonia perfeita”, acredita. Apesar de mundos reconhecidamente diferentes, não falta base teórica para traçar semelhanças e aproximar aquilo que o Atlântico falsamente afastou. As escalas em que assenta muita música tradicional cabo-verdiana coincidem com aquelas que precedem o blues como canto de trabalho crescido nas margens do Mississípi.

As ligações não se esgotam aí. Em 1965, numa altura em que o jazz exultava com a descoberta da bossa nova, o histórico pianista Horace Silver percebia o mesmo potencial jazzístico na música de Cabo Verde ao lançar The Cape Verdean Blues, seguramente inspirado pela música que o seu pai, John Tavares Silva, lhe dera a ouvir.

Neste momento, dizem Carmen Souza e o seu companheiro Theo Pas’Cal, é Cabo Verde a percorrer o sentido inverso e a descobrir com avidez o universo do jazz, identificando a expansão possibilitada pela fusão das duas músicas. Algo que Carmen Souza vem desenvolvendo desde a edição de Ess E Nha Cabo Verde (2005). Em Kachupada, por exemplo, há crioulo e funaná em Donna Lee,  tema original de Charlie Parker, e batuque em My Favorite Things, a canção de Rodgers e Hammerstein escrita para o musical Música no Coração, depois popularizada no meio do jazz por John Coltrane. Carmen cantam ambos como se os temas tivessem, afinal, sido criados em Santo Antão.

Elemento curioso na voz de Carmen Souza é a adopção de vários sotaques diferentes para o crioulo que escolhe cantar. A ilha dos seus pais, Santo Antão, tem aquilo a que chama “um sotaque mais alentejano”, enquanto que a Praia (Ilha de Santiago) lhe oferece uma versão “mais fechada, mais staccato”. E, por isso, consoante a canção que tem pela frente, assim avança por um, por outro ou por outro ainda.

“Para momentos mais tensos posso usar esse sotaque mais badiu [designação do crioulo de Santiago]; para momentos mais melodiosos posso usar esse sotaque mais típico de São Vicente ou Santo Antão, que é quase música brasileira, em que se ouve aquela melodia toda na letra”, concretiza. “Gosto de brincar com isso porque é quase como se fosse mais um instrumento que posso usar da maneira como quero”.


No mundo
Esta sonoridade híbrida encontrada por Carmen Souza e Theo Pas’Cal tem levado a cantora a actuar em dois circuitos paralelos – o do jazz e o da world music. Com a grande benesse, assumida por Carmen, de Cesária Évora ter tornado a música cabo-verdiana reconhecível em todo o mundo e à margem de qualquer suspeição quanto à sua qualidade e especificidade, com o público a encaixar com naturalidade a forma pessoal com que a cantora aborda as suas origens.

Daí que esteja a lançar internacionalmente o álbum ao vivo Live at Lagny Jazz Festival, pela editora Galileo Music, forma de captar a cumplicidade de palco trabalhada durante muitas noites entre Carmen, Theo, o pianista Bem Burrell e o percurssionista Elias Kacomanolis. É precisamente esta formação, e esta experiência de concerto – acrescida de alguns inéditos –, que soará esta sexta-feira na Culturgest, em Lisboa, e sábado, dia 18, no Teatro Viriato, em Viseu.

Apesar de frisarem a importância da essência da sua música, independentemente de estarem em Londres, Paris, Nova Iorque ou Lisboa, a verdade é que há oito anos Carmen Souza e Theo Pas’cal escolheram Londres como base estratégica para espalhar a sua arte pelo planeta. Em parte, devido a facilidades logísticas, mas também por se tratar de uma cidade multicultural, com um acesso facilitado às mais diversas músicas do mundo.

Cada sítio em que se possam instalar, como é evidente, estimulará distintas reacções criativas – até por implicar o convite a músicos diferentes para se sentarem à mesa com os dois –, mas até por isso preferem não hierarquizar, não escolher determinados ambientes como potenciadores de leituras mais ou menos válidas para a música que pretendem fazer. “Nunca sabemos bem para onde estamos a ir e esse é que é o grande desafio”, admite Carmen Souza.

No entanto, há um solo que nunca muda: Cabo Verde. A dupla regressa periodicamente ao país e Carmen socorre-se muitas vezes do conhecimento do seu pai para receber lições de História que a ajudam a entregar-se de forma mais consciente ao reportório.

Foi assim, por exemplo, com 6 on na Tarrafal, uma morna antiga do cancioneiro popular que relata a experiência de um homem detido no Tarrafal, pedindo que lhe abram as portas da prisão para se despedir da sua mãe acabada de morrer. É precisamente aí que Carmen Souza busca alimento para a sua música: nas histórias das suas gentes, claro e que o mundo precisa ouvir. Mesmo que das letras apenas possa intuir sentidos. A música faz o resto.

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