A televisão do café tem de pagar portagem?

STJ vs. SPA: pagar ou não pagar, eis a questão...

Luís Francisco Rebelo, o criador e cobrador dos direitos de autor em Portugal – honra lhe seja feita – teria tido um fim de ano particularmente triste se fosse vivo. O Supremo Tribunal de Justiça (STJ) tomou uma decisão no domínio dos direitos de autor absolutamente contrária à tese por si defendida e pela “sua” Sociedade Portuguesa de Autores (SPA), de acordo com a qual é necessário obter a autorização daquela sociedade – pagando-lhe – para poder difundir num estabelecimento público o que passa na televisão.

Num “acórdão de fixação de jurisprudência” – isto é, numa decisão que obriga todos os tribunais a decidirem no mesmo sentido mas que não torna ilegal o entendimento contrário, já que o STJ não pode fazer leis – o STJ determinou que “a aplicação a um televisor, de aparelhos de ampliação do som difundido por canal de televisão, em estabelecimento comercial, não configura uma nova utilização da obra transmitida, pelo que o seu uso não carece de autorização do autor da mesma”, aderindo, assim, à posição defendida por um outro jurista, Oliveira Ascensão, diametralmente oposta à de Francisco Rebelo e da SPA.

O que o STJ teve de apreciar foram duas decisões, em que, sobre factos iguais e com a mesma lei, o Tribunal da Relação de Guimarães tinha decidido de forma oposta. Num dos casos, o Tribunal da Relação de Guimarães entendeu que um comerciante, ao ter um televisor no seu estabelecimento com quatro colunas de som, que não faziam parte do mesmo, a difundir o som pelo estabelecimento, estava a fazer uma nova difusão das músicas e prestações artísticas que eram transmitidas, isto é, ia recebendo as mesmas no aparelho de televisão e estava a utilizá-las de uma forma nova através das colunas que colocara. Num outro caso, de um outro estabelecimento em que a situação era igual – um televisor e o som transmitido dentro do estabelecimento por quatro colunas que não faziam parte do aparelho –, o Tribunal da Relação de Guimarães tinha considerado que tudo se resumia a uma mera recepção da transmissão televisiva, limitando-se as colunas de som a melhorar ou aperfeiçoar a qualidade e alcance da transmissão recebida, não havendo qualquer nova utilização.

As consequências de um e outro entendimento são enormes: se há uma mera recepção, não há que ter autorização dos autores – ou melhor, da SPA como sua representante – uma vez que tais direitos já foram pagos pelos canais de televisão, e, assim, nada há a pagar à SPA, pelo que o proprietário do estabelecimento não está a cometer nenhum crime ao proporcionar aos clientes do seu estabelecimento essas melhores condições de visionamento e audição da transmissão televisiva; já se se considerar que a colocação das colunas pelo estabelecimento, permitindo uma boa audição a pessoas afastadas do aparelho, corresponde a uma nova utilização das obras que são transmitidas pela televisão, não se estando perante uma mera recepção, então haverá que obter as autorizações da SPA, sob pena de se estar a cometer o crime de usurpação.

A questão é de alguma complexidade, não pode ser vista a preto e branco e tem situações de fronteira. O STJ nesta decisão não deixa de reconhecer que haverá uma nova utilização – e a obrigação de pagar à SPA – quando a recepção é convertida ela própria num espectáculo publicitado, designadamente em torno de eventos desportivos ou musicais, haja ou não entradas pagas, eventualmente com um arranjo ou decoração especial do espaço, tudo com vista à captação de uma audiência alargada. Aqui, no entender do STJ, “já se abandona o plano da simples recepção para se invadir o da criação, já se estando no plano da comunicação pública”. Ou, como igualmente refere o STJ,  “quando se tratar de uma recepção multiplicada, como acontece nos estabelecimentos hoteleiros, em que a recepção é distribuída nos quartos e salas comuns, o que se traduz, para além da amplificação exponencial do sinal radiodifundido, num serviço extra prestado pelo hotel aos hóspedes, susceptível de atrair clientela, e, por consequência, lucros, pelo que se pode considerar uma reutilização da obra, sendo por ela devida uma remuneração”.

Por outro lado, tanto quanto sei, a própria SPA teria uma política de não exigir o pagamento desta autorização em qualquer tasca ou pequeno estabelecimento em que houvesse um aparelho de televisão. Na verdade, parece chocante que o pequeno comerciante que coloca um aparelho no seu café, mesmo com umas colunas “melhorzinhas”, a fazer-lhe companhia e aos clientes durante o tempo que lá estão a consumir, tenha de ter ainda mais um custo, quando os autores já foram pagos por quem transmite as suas obras.

Os direitos de autor são uma área do direito em constante mutação e crescimento, surgindo, logicamente, novos direitos – novas fontes de receita–  com os desenvolvimentos tecnológicos. Mas convém não exagerar...

Advogado, ftmota@netcabo.pt

 
 
 
 

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