Eusébio, a "África portuguesa" e Coubertin

O processo começou nos anos de 1930, com a França, país pioneiro na integração nas suas melhores equipas, e mesmo na sua selecção nacional, de futebolistas provindos das suas colónias. Por seu turno, a Bélgica, na década de 1940, em razão dos seus laços com o Congo, apostou estrategicamente no futebol, na lógica de que colonizar implicava “civilizar” e de que o desporto seria uma ferramenta ideal para o efeito.

Tornou-se comum: o futebolista africano, com aptidões quase inatas para a modalidade, era identificado e servia de “montra”, atraindo clubes europeus. Foi o caso, por exemplo, do Sporting, que no início da década de 1950 apresentou uma proposta ao congolês Mokuna, o qual, à luz dos regulamentos da época, não auferia qualquer remuneração nem era protegido por qualquer seguro. “Regulamentos muito contrários à nossa sorte, talvez por sermos negros” lê-se numa carta que consta dos arquivos da FIFA…

Portugal não fugiu à regra: o império colonial disseminou o desporto – através de militares, missionários e colonos – e “descobriu” talentosos futebolistas que rumaram à metrópole.

Os diferentes processos de colonização aceleraram, pois, múltiplos fluxos migratórios. Intramuros, Eusébio, em 1961, foi o primeiro grande caso, com a particularidade de logo motivar uma longa “batalha jurídica”, também aqui o tornando intemporal. Os relatos da época, aproximam-nos de realidades típicas do desporto globalizado e mercantilizado de hoje, sobretudo no pós-Acordão Bosman: olheiros; disputa de um jogador entre rivais; uma mãe, representante legal de um futebolista menor, a intervir; alegados raptos; “janelas” para inscrever jogadores; representantes de clubes; o (muito) dinheiro e o “certificado internacional” necessários para a “libertação” do jogador; recursos; negociações; circulação e transferência de jogadores. 

A “intemporalidade” de Eusébio deriva ainda de o “Pantera Negra” ter estado ligado a uma realidade que ainda hoje teima em ser actual: a tendência de alguns Estados para ingerir no mundo (nas organizações) do futebol. Com efeito, ainda que a doutrina não seja unânime, muitos imputam a Salazar uma intervenção que terá inviabilizado a contratação milionária de Eusébio por pelo menos um clube italiano.

Enquanto Portugal caminhava para os seus “três D” (Democratizar; Descolonizar; Desenvolver) gradualmente, pelo Mundo fora, foi-se verificando a “descolonização do futebol” (P. Dietschy, 2006), no sentido de uma nova cartografia do futebol, patente no facto de a independência dos “jovens Estados” - emergente da descolonização propriamente dita - motivar uma quase simultânea filiação na FIFA.

Paulatinamente, os países africanos foram apostando no futebol como vector de união, coesão e identidade nacional e em 1966, precisamente no ano em que Eusébio brilhou no Mundial, foi criado o Conselho Superior dos Desportos Africanos, que dez anos depois se tornou num órgão técnico da Organização da Unidade Africana. Progressivamente a geopolítica do futebol foi, então, assumindo novos contornos.

Durante este processo, Eusébio, pela sua grandeza e pelo seu exemplo, abriu portas a muitos outros atletas lusófonos, sendo um paradigma gritante de emancipação de grandes futebolistas naturais das províncias ultramarinas, que foram triunfando em Portugal, de forma afirmativa e descomplexada, numa irmandade racial que ainda hoje perdura – impossível aqui não reter o que Simões lembrou nesta segunda-feira: para Eusébio, ele era o seu “irmão branco”.

Esse fluxo de futebolistas teve méritos que ainda hoje extravasam largamente a componente desportiva, mas que nela se fundam. Pense-se, por exemplo, nos “Jogos Desportivos da CPLP” ou nos “Jogos da Lusofonia” e a união que aí se gera. A união que leva a que se diga, sem questionar, que Eusébio é simultaneamente “embaixador” de Portugal e de Moçambique, ou que explica um cartaz mostrado no Estádio da Luz: ”Cabo Verde chora a morte do Rei Eusébio”.

Assim se materializou na CPLP, através do futebol, e tendo Eusébio como figura de proa, aquilo que Pierre de Coubertin, fundador dos Jogos Olímpicos da Era Moderna idealizara para África no seu todo, designadamente a “África Portuguesa” – a expressão é do próprio Barão francês -, razão pela qual, como Coubertin sublinha nos seus escritos, foi chamado a colaborar o Conde Penha de Garcia, então Presidente do Comité Olímpico de Portugal.

Em 1923, à margem de uma Sessão do Comité Olímpico Internacional, na presença de representantes de ministérios e delegados de países envolvidos em processos de administração colonial, Coubertin propôs a “Medalha Africana” e os “Jogos Africanos”. Mobilizava-o a “conquista de África” para a prática do desporto e a “transposição do plano muscular para o plano moral”, como base de pedagogia desportiva. A medalha seria atribuída a quem estimulasse os “exercícios desportivos”, entre colonos e indígenas, sob um lema gravado a latim: Athletae proprium est se ipsum noscere, ducere et vincere (O dever e a essência do atleta é conhecer-se, guiar-se e vencer-se a si mesmo). Por seu turno, os Jogos seriam um evento para obstar a uma outra preocupação do Barão: a “luta do espírito colonial contra a tendência a emancipar o indígena, tendência cheia de perigos frente aos Estados maiores da metrópole”.

Ora, como vimos, ao futebol e a Eusébio, que seguiu o referido lema da medalha, devemos também a não ocorrência, entre nós, de tais perigos, algo sem preço.

É curioso constatar esta ligação, porventura improvável à primeira vista, entre Eusébio, a “África Portuguesa” e Coubertin. Mas pensando bem, como dizia Toni, “Eusébio era uma estátua grega”. E, acrescenta-se, personificava a pureza do atleta grego dos Jogos Olímpicos da Antiguidade: trabalhador, humilde, honesto, desportivamente genial, com gestos éticos e estéticos singulares, um reconhecimento planetário e uma glória imortal! Uma lenda. Um mito.

Alexandre Miguel Mestre escreve a convite do PÚBLICO. Advogado; Docente; Ex- Secretário de Estado do Desporto 

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