Mudar de paradigma político

Começa a haver a noção clara de que, para sair da crise, é preciso mudar práticas, mudar comportamentos, alterar instituições.

1. Sabe-se o tempo aproximado de gestação de uma criança no ventre materno, mas não se sabe o tempo necessário para mudar o paradigma da acção política em Portugal indispensável para a regeneração do país. Esta pressupõe mudança, que encontrará sempre oposições dos que perdem, se ela se efectivar. Raramente estes argumentam na base dos interesses individuais afectados, porque isso não colheria no espaço público da argumentação. Antes justificam essa oposição com frases do tipo: falta de oportunidade, a ideia é boa. mas a reforma está mal desenhada, geraria instabilidade e aumentaria o risco. O statu quo, de instituições ou políticas públicas, é geralmente estável e previsível, e é fonte de expectativas e de comportamentos individuais alinhados e baseados na manutenção das regras existentes. O principal mérito, não dispiciendo, do statu quo é que contribui para a estabilidade e para a coordenação da vida em sociedade. Mas tem três problemas potenciais: pode não ser justo, pode sê-lo, mas não ser sustentável no tempo ou pode ser justo e sustentável, mas não eficiente.

2. Parece-me ser da mais elementar das evidências que Portugal não é hoje um país sustentável. Refiro-me apenas à insustentabilidade das finanças públicas num quadro recessivo ou de crescimento económico anémico. Um país até pode ser sustentável em muitas dimensões, mas basta que seja insustentável numa dimensão estrutural, para não ser viável enquanto entidade autónoma e soberana, o que tem como corolário a necessidade de alterar de forma estrutural e permanente o statu quo,mudando de paradigma político. Antes de reflectir sobre essa mudança vale a pena perspectivar o ano de 2014.

3. Não tenho ansiedade sobre as classificações (rating) da Moodys e da Standard and Poors ao risco de crédito da República. Essas classificações só mudarão substancialmente se o país reduzir significativamente o défice orçamental para níveis abaixo dos 3% do PIB, crescer a taxas significativas e inverter a tendência de crescimento do rácio da dívida no produto. Ora nada disto acontecerá em 2014, pelo que os ténues sinais positivos de retoma levarão, quando muito, a ligeiros ajustamentos nos ratings.Também não marquei na agenda a “hora da libertação da troika”. Uma ideia infeliz de Paulo Portas, até mesmo de acordo com os seus critérios eleitoralistas, pois o mais provável para 2014 será um resgate suave que dará pelo nome de “programa cautelar”, por razões de semântica política do agrado quer da troika, quer do Governo. As boas notícias comparando com o actual resgate são sobretudo três: o montante de empréstimo será significativamente inferior, as condições impostas pelos credores serão muito menores e o prazo também. Neste capítulo, a esperança está em o Governo ser forçado a abandonar a visão “paroquial da consolidação orçamental enviezada” (ver PÚBLICO de 01/12/2013) de que “orgulhosamente sós” vamos conseguir fazer o trabalho de casa e que o faremos sobretudo do lado da despesa.

4. O paradigma político que levou Portugal à situação presente deriva dum deficiente funcionamento do sistema político, e dos partidos, caracterizado por alternância democrática entre partidos fechados, sem linhas programáticas sólidas, com informação assimétrica sobre os dados do país, que permitem o uso e abuso, quer do poder pelo governo, quer de demagogia pelas oposições. Simplificando, enquanto estão na oposição, os partidos cativam os eleitores, e estes deixam-se cativar, com promessas de que quando estiverem no poder farão tudo diferente, não cortarão a despesa, nem aumentarão impostos. Após alcançadas as almejadas cadeiras do poder, a primeira reacção é que “as coisas estavam muito pior do que pensávamos”, o que legitima que “afinal temos de adoptar medidas contrárias àquilo que anunciámos no programa eleitoral”. As oposições que não partilham o poder podem continuar com propostas mais ou menos irrealistas, pois nunca serão testadas.

5. Um aspecto positivo da actual crise é que uma parcela mais substancial da população está mais alerta e não se deixará enganar tão facilmente. Colocará perguntas incómodas. Eleições europeias para quê? Porque é que grande parte dos fundos comunitários continua a ir para a política agrícola comum? Afinal o sistema de Segurança Social é insustentável? Se sim, o que podemos fazer para assegurar pensões dignas para as próximas gerações? Um dos méritos da articulação Governo, troika, Tribunal Constitucional é que pela primeira vez há no cidadão comum a noção clara da restrição orçamental do Estado: se não se corta aqui, é preciso ir cortar ali, ou aumentar a receita acolá. Também começa a haver a noção clara que, para sair da crise, é preciso mudar práticas, mudar comportamentos, alterar instituições.

6. Esta alteração na percepção da realidade por uma parte crescente dos cidadãos cria condições para uma alteração de paradigma no jogo político, pois as estratégias de dissimulação, de ambiguidade e de puro engano do eleitorado, praticadas por executivos passados (e acentuadas pelo actual Governo) já não serão premiadas da mesma forma no futuro. Isto coloca exigências acrescidas aos partidos, que de simples máquinas de conquista do poder (os do “arco do poder”) ou de erosão do poder têm de se transformar internamente para dar resposta aos novos desafios que lhes são colocados ao nível da formação de quadros, dos mecanismos de democracia interna, da qualidade das elites partidárias eleitas e da abertura à sociedade. Sem estas alterações, os partidos nunca conseguirão atrair quadros qualificados suficientes para alimentar sólidas bases programáticas necessárias para apresentar propostas credíveis para Portugal.

7. Vêem-se sinais que permitem algum moderado optimismo quanto à percepção desta necessidade de mudança por parte dos partidos. No PS a moção de Francisco Assis, quando candidato à liderança, ou a moção de um grupo de jovens socialistas e independentes encabeçado por João Tiago Silveira; no CDS a actual moção de João Almeida e Miguel Morais Leitão, entre outros, a apresentar ao congresso do próximo fim-de-semana; no PSD as propostas de reforma do sistema eleitoral inscritas no programa eleitoral, sob a boa influência, ainda que efémera, de Manuel Meirinho no Parlamento (que acabou por abandonar); no PCP, Bloco e organizações da sociedade civil que estudam a dívida pública e ensaiam mecanismos de resposta à crise da dívida. Finalmente, no putativo partido Livre, que coloca como seu elemento diferenciador o método de eleições primárias abertas para a escolha de candidatos. Estas ideias, que atravessam o espectro partidário, têm sido alheias às direções partidárias, não têm sido apoiadas pelos líderes e têm sido geralmente derrotadas. Mas as derrotas de hoje são as vitórias de amanhã.

8. O statu quo político (do sistema eleitoral, do regime de incompatibilidades de deputados, do sistema de financiamento partidário, da inexistência de formação de quadros, etc.) não é justo, não é eficiente, nem assegura a sustentabilidade do país enquanto nação autónoma e soberana. Tenho esperança de que em 2014 as lideranças políticas percebam que o mundo político em que medraram está em vias de extinção e iniciem uma mudança de paradigma político, falando a sua verdade, naturalmente diversa, aos portugueses. Esta mudança demorará certamente mais do que o nascimento de uma criança.

Professor do ISEG/UL e presidente do Instituto de Políticas Públicas TJ-CS

 
 
 
 
 

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