Não é só mudar de ano

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Coro Gulbenkian DR
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A soprano Deborah York DR

Te Deum de António Teixeira Coro Gulbenkian Divino Sospiro Jorge Matta (maestro) Com Deborah York, Joana Seara, Terry Wey, Fátima Nunes, João Rodrigues, Pedro Cachado, Hugo Oliveira e André Baleiro Lisboa, Igreja de São Roque Terça-feira, 31 de Dezembro de 2013, às 17h 4 estrelas

A bela Igreja de São Roque recheou-se de gente para ouvir o Te Deum de António Teixeira, obra maior deste compositor português do século XVIII. Peça de grandes dimensões, o Te Deum é também uma obra de imponência pelos meios que utiliza: para além de uma orquestra barroca variada, este grande “hino” escrito em 1734 possui um impressionante efectivo vocal, destinando-se a cinco coros (a quatro vozes) e oito solistas (dois de cada naipe). E apesar da excelente actuação da orquestra Divino Sospiro, que mostra hoje um conhecimento profundo da linguagem barroca, foram as vozes humanas que mais fundo ressoaram em São Roque.

Em primeiro lugar, o Coro Gulbenkian, que soube conjugar entusiasmo e clareza, não separando a boa projecção sonora da articulação rigorosa da palavra, que está no centro deste Te Deum. A palavra religiosa – “a Ti, Deus, Te louvamos” – possuía, na época em que foi escrito, uma outra leitura: tratava-se de um hino que exprimia não só a confiança em Deus, mas que constituía, ao mesmo tempo, uma exibição e celebração do poder do rei, que era preciso tornar evidente através de uma cuidadosa encenação. O hábito regular de fazer um Te Deum no final do ano em São Roque (desde inícios do século XVIII até ao XIX) obrigava a “pôr em cena” grande música original, composta especialmente para a ocasião, pois era excepcional e festivo o seu sentido. Mas, apesar da excepção, era a regra absolutista e o casamento do poder com a religião que se propunha exaltar – e uma marca de continuidade do poder absoluto que se tratava de sublinhar. Saltando o ano para o lado de lá.

Hino poderoso, bem dirigido pelo maestro Jorge Matta, a que o Coro Gulbenkian soube dar som e sentido, vencendo a aparente facilidade (que é uma dificuldade) dos ecos da igreja. Mas na música de Teixeira não ressoa só este “hino” festivo, nem se trata apenas de um fogo-de-artifício bem estruturado. Há lugar para momentos quase operáticos, árias de intensidade emotiva “interior” e uma grande variedade musical dentro de um estilo barroco cosmopolita, de um compositor que estudou longamente em Roma, que conheceu bem a música europeia da época e compôs também para o teatro (em Portugal são famosas sobretudo as suas colaborações com António José da Silva, “o Judeu”, por exemplo na música das Guerras de Alecrim e Manjerona).

É deste teatro que se faz também o Te Deum, e um bom conjunto de solistas ajudou a entendê-lo. A soprano Deborah York começou um pouco à defesa, com dificuldades na projecção vocal e sem garra, mas acabou por superar tudo isso na bela ária Tu, devicto moris. Joana Seara fez um trabalho excelente, brilhando a solo e muito equilibrada quando cantando em conjunto. Terry Wey foi um contratenor claro e afinado. Fátima Nunes, com um interessante timbre de meio-soprano, saltou do coro para uma muito boa prestação ao lado dos solistas. João Rodrigues parecia nervoso na sua primeira intervenção, mas aqueceu para uma prestação muito boa nas árias e secções de conjunto seguintes. Pedro Cachado, também tenor, foi muito correcto na dicção e mostrou boa projecção vocal. Finalmente Hugo Oliveira e André Baleiro, barítonos, ambos (de formas diferentes) com grande potência expressiva, revelando uma técnica vocal que não descura nunca a clareza da palavra cantada.

Uma ideia para terminar: por que não encomendar obras novas (originais, como era a de Teixeira no seu tempo!) para novas passagens de ano em vez de retomar tradições absolutistas? E uma pergunta: mas não parece absurdo hoje cantar louvores em latim, num país tão escavacado e numa Europa com pés de barro? Parece. Mas a música de António Teixeira responde doutra forma, porque – cantada assim – ultrapassa o interesse histórico e as condições do seu tempo e provoca uma vibração de vozes que talvez ainda nos dê força para mudar. E não é só mudar de ano.
 
 
 
 
 

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