Um príncipe nigeriano ofereceu-me cura para a ressaca

Na primeira semana do ano, há dois tipos de artigos muito populares na imprensa portuguesa. Um são as previsões para 2014, o outro são as receitas para curar as ressacas da passagem de ano. Acabam por ser parecidos, na medida em que se inserem ambos na popular tradição de charlatanice jornalística. Quer as tentativas de adivinhar o futuro, quer as sugestões para sanar os efeitos da ingestão exagerada de álcool, não passam de burlas. Porque é impossível curar uma ressaca. E conseguir adivinhar o futuro também não é muito provável.

“Cura para ressaca” é um paradoxo ao nível de “música techno de embalar”, “top model timorense” ou “nazi encantador”. Ressaca, aquela dor no corpo em que parece que fomos atropelados, mais a dor emocional de termos sido nós a guiar o carro que nos atropelou não tem cura.

“Receita milagrosa contra a ressaca” podia ser o subject de um email de um príncipe nigeriano. “Olá, o meu nome é Príncipe Rashid Obigwirengie. Tenho 100 milhões de dólares que preciso de retirar do meu país. Ajude-me e dou-lhe 30%. Para comprovar que sou uma pessoa de confiança, aqui vai a minha receita especial para curar ressacas: (…)”

Se uma receita para curar ressaca funcionou, é porque não foi aplicada numa ressaca. Quando muito, foi aplicada num ligeiro mal-estar causado pelo álcool. Que é outra coisa. Achar que se pode aplicar numa ressaca é como achar que mercurocromo, lá porque funcionou num corte com papel, vai resultar num pescoço guilhotinado.

Há receitas contra a ressaca para aplicar antes e depois da bebedeira. Em qualquer um dos casos, trata-se de embustes. Peguemos numa fórmula pré-embriaguez: “Durante o dia, coma grandes quantidades de fruta. Beba dois decilitros de azeite. Entre cada copo de vinho, beba um copo de água.” Até pode aliviar enjoos, mas, obviamente, não cura ressacas. Quem se dá ao trabalho de ter uma alimentação saudável, ou de beber quantidades moderadas, ou racionar o álcool ao longo da noite não é o género de pessoas que conseguem beber as quantidades diluvianas de álcool necessárias para sofrer uma ressaca.

Tomemos agora uma das receitas para a manhã seguinte: “Pegue num (…).” Não é preciso ler mais. Basta isto para perceber que não vai funcionar. Porque é uma instrução, o que implica que o ressacado a) abra os olhos; b) leia; c) perceba o que está escrito; d) pegue em qualquer coisa. Ora, a realização de um destes passos implica que a pessoa não esteja com uma ressaca.

Uma pessoa sabe que está a ter uma ressaca, aliás, intui que está a ter uma ressaca — saber implica um processo cognitivo que não está disponível na altura — porque não está a ter mais nada. A ressaca é um gordo numa gelataria: não partilha. Não há ressacas por turnos, nem se pode pená-la em part-time. Não se faz multitasking com uma ressaca. Há um contrato de exclusividade. E só a ressaca é que pode rescindir.

Quando se contraria a ressaca e se insiste em trabalhar, podem sair crónicas destas.

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