“Num país onde não se sonha, emigrar é natural”

Portugal de 2013 é um país a esvaziar-se, como era em 1973 ou em 1993, embora há 20 anos fizesse de conta que não, deslumbrado que estava com o facto de se estar também a converter num país de imigrantes.

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O mundo tornou-se o objectivo para uma emigração qualificada sem precedente na história portuguesa Nuno Ferreira Santos
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Emigrantes na Suíça, ontem e hoje destino de milhares de portugueses Adriano Miranda

Vítor Jesus trabalha na General Electric Company, a multinacional fundada por Thomas Edison, inventor da lâmpada. Quando decidiu trocar Portugal pelo Reino Unido, ninguém ficou espantado: “Toda a gente achou natural”. Assumiam “que era mais um que estava a deixar o café pingado e o pastel de nata por estar frustrado”. O especialista em redes de comunicação, que havia meses defendera o doutoramento na Universidade de Aveiro, até “sentia que estava a trair o país”. E repetia que não, que não perdera esperança, que a crise não se eternizará, que Portugal melhorará.

João Peixoto, do Instituto Superior de Economia e Gestão, da Universidade Técnica de Lisboa, faz parte de um projecto europeu que procura perceber como a crise tem afectado as migrações e a mobilidade no espaço comunitário em geral e, em particular, na Irlanda, na Grécia, em Itália, em Espanha e em Portugal. Parece-lhe “dramático” que 51,9% das 3322 pessoas que responderam ao que acabou por ser um “inquérito à emigração qualificada portuguesa” digam ter saído por “não ver futuro” para si em Portugal. Muitos invocam má inserção no mercado laboral: 20,6% estavam desempregados, 27,9% empregados sem vislumbre de progressão, 19,2% empregados com salário baixo.

Não esperava tanta adesão ao inquérito, que em Portugal esteve disponível no PÚBLICO e em várias redes sociais entre 20 de Maio e 15 de Agosto de 2013. Nem tão altas qualificações entre inquiridos: 87,7% declararam possuir grau de educação de nível superior e, entre esses, 39,1% um mestrado, 9,4% um doutoramento. Julga que, “pela primeira vez”, se pode falar em fuga de cérebros.

As universidades abriram-se após o 25 de Abril de 1974. Em 2012, a taxa bruta de escolarização no nível superior era de 54,6%. “A educação avançou a uma velocidade diferente da economia”, resume o sociólogo. O país não está a conseguir absorver a mão-de-obra qualificada. Mais de metade parte para outros estados da União Europeia ou a ela associados, como Vítor Jesus.

Vítor estava a trabalhar em Lisboa quando foi contactado por uma agência. Tinham visto o seu currículo na rede social LinkedIn. Procuravam alguém com aquele perfil para uma multinacional. A sua candidatura seria bem-vinda. Submeteu-a, passou por três entrevistas, a última das quais em Bristol, na Grã-Bretanha.  Pagaram-lhe o bilhete de avião, o hotel, recomendaram-lhe que ficasse mais uma noite, a ver se gostava da cidade. A empresa suportaria os custos da sua mudança.

Cada vez mais países do Centro e do Norte da Europa recrutam nos países do Sul profissionais de que precisam. Para João Peixoto, há perigo de a livre circulação acentuar desequilíbrios: “A manter-se a direcção de fluxos, a drenagem de trabalhadores (qualificados ou não) pode reforçar as dinâmicas virtuosas da economia a centro e norte e agravar as dinâmicas negativas a sul”. 

No entender do sociólogo, “a gestão de expectativas é relevante no desenho de políticas públicas”: além de dados objectivos como taxa de desemprego, precariedade laboral, há que atender às crenças decorrentes do ambiente geral. “É importante dizer que os últimos anos não foram só ilusão”.

Clima, segurança, protecção social, serviços de saúde, infra-estruturas são vantagens apontadas por Pedro Lomba, secretário de Estado adjunto do ministro adjunto e do Desenvolvimento Regional, para aliciar imigrantes "de elevado potencial", como profissionais qualificados, investidores, reformados.

Competir pelo talento
O número de estrangeiros residentes não pára de cair – 451 mil em 2009, 443 mil em 2010, 434 mil em 2011, 414 mil em 2012, segundo o Serviço de Estrangeiros de Fronteiras (SEF). No ano passado, mais de oito mil dos 12.528 vistos emitidos correspondiam à categoria d5, isto é, eram atribuídos por via do estudo, intercâmbio de estudantes, estágio profissional ou voluntariado.

A crise económica não deve fazer o país fechar-se à imigração, diz Pedro Lomba ao PÚBLICO. No modelo que defende, Portugal tem de entrar “na competição internacional pelo talento”. Estrangeiros “talentosos” – que até podem não ser qualificados, mas terem ideias de negócio – criam emprego. E isso pode reter portugueses que estão de saída ou fazer regressar alguns dos que já saíram.

Há quem, como João Peixoto, ache o discurso de Lomba “simpático”. Mas também há quem, como o geógrafo Jorge Malheiros, o considere susceptível de desagradar portugueses qualificados sem trabalho ou com trabalho precário, que sentem que têm de fazer vida longe de casa.

“Não vi estudos que demonstrem que há excesso de profissionais de alguns sectores e défice e outros e que não é possível requalificá-los”, diz Malheiros. Parece-lhe que tem mais sentido estimular a economia, criar emprego, gerir os fluxos migratórios de forma integrada, de modo a captar gente que possa ajudar o país a sair da crise, seja ela portuguesa ou estrangeira.

Os trabalhadores qualificados constituem apenas uma parte do fluxo migratório. A reflectir o facto de Portugal ter uma das mais baixas taxas de ensino superior da União, o grosso do movimento de saídas do território nacional faz-se de pessoas com formação média ou baixa. Segundo o Instituto Nacional de Estatística (INE), no ano passado houve 89 mil pessoas a nascer, 107 mil a morrer, 121 mil a emigrar. Desde o final dos anos 60 que não se via tal debandada. 

Vítor e Valdemar
Até pode ser que o Reino Unido de hoje seja a França da década de 1960, mas Vítor Jesus não se sente emigrante. Está perto do Porto – graças à Internet e às companhias de baixo custo. A ideia de regresso, para ele, nem faz sentido. Agora, está no Reino Unido, daqui a um ano pode estar em França ou na Alemanha ou em Portugal ou noutro país qualquer. E esta forma de ver o mercado laboral cava um fosso entre Vítor, solteiro, 37 anos, e Valdemar Amante, casado, 71 anos, que há 40 anos partiu para o Luxemburgo.

O talhante Valdemar Amante só fez a 4.ª classe. Não sabia uma palavra de francês ou de alemão ou de luxemburguês quando chegou ao Grão-Ducado, em 1973. Comprou um dicionário de português-francês para aprender as designações certas das peças de carne e começou a atender “as senhoras ao balcão”.

A 31 de Dezembro de 1963, Portugal e França tinham assinado o primeiro acordo de recrutamento, migração e colocação de trabalhadores portugueses. A emigração transatlântica deu então lugar à emigração europeia. Depois do apregoado “sonho brasileiro”, o país entregava-se à “ilusão francesa”.

Não era movimento que o antigo regime incitasse, embora apreciasse as remessas de divisas dos que partiam. Poucos conseguiram ter os documentos em ordem. Muitos partiram clandestinos – alguns com passaporte de turista, a maior parte com passaporte falso, o chamado “passaporte de coelho” usado por quem passava a fronteira “a salto”.

Entre 1964 e 1974, à volta de um milhão de habitantes deixou Portugal. Pelos cálculos de estudiosos como José Carlos Laranjo Marques, 80,9% desembarcaram em França. Ficava perto, praticava bons salários, não exigia qualificações e esforçava-se pouco para controlar a imigração irregular.

Esvaziava-se um país rural, analfabeto, oprimido, de certo modo feudal, assolado por uma guerra. Na frente iam homens, jovens, solteiros ou recém-casados. As mulheres esperavam, em média, três anos e seguiam-nos. Ninguém tinha tantos bebés em França como os portugueses. Portugal iniciava o declínio demográfico que o haveria de converter num dos mais envelhecidos países do mundo.

A vida de Valdemar Amante era apertada em Lisboa. Tinha ofício, mas não prosperava. Ganhava 300 escudos por semana, a mulher ganhava 25 tostões por hora a matar frangos e já tinham três filhos. Bem via que quem emigrava vivia melhor. E era isso que queria para si e para a família.

Cumprido o serviço militar obrigatório, muito Valdemar Amante pediu o “passaporte do emigrante”. À quinta vez, avisaram-no: se voltasse a tentar, sofreria as consequências. Foi “a salto”. Viajou no carro de um português, então residente no Luxemburgo, que lhe arranjara trabalho como pintor. Tardou dois dias e uma noite a fazer a viagem que agora faz em menos de um dia.

O travão do choque petrolífero
Parece que foi na hora certa. Naquele ano, deu-se o choque petrolífero – quando a Organização dos Países Produtores de Petróleo (OPEP) inflaciona os preços por causa do apoio ocidental a Israel, na guerra do Yom Kippur. Depois da expansão económica, que levara ao nascimento do Estado providência na Europa Ocidental, anunciava-se o fim da era de ouro do capitalismo nos países industrializados. Muitos perderam o emprego. Países como a França decidiram fechar as fronteiras.

Os estudos de Maria Ioannis Baganha fazem uma espécie de fotografia daquele ano: 890 partiram para o Brasil, 8160 para os EUA, 7403 para o Canadá, 63.942 para a França, 38.444 para a Alemanha Ocidental. Não se deixou de sair, mas era ainda mais difícil, explica o sociólogo Albertino Gonçalves.

Nalguns países, ganhava fulgor a ideia de que já havia estrangeiros a mais. No final da década, a França oferecia dez mil francos aos que quisessem regressar ao seu país de origem. Muitos aproveitaram, até porque “tinham começado a acreditar em Portugal”, recorda Albertino Gonçalves, professor do Instituto de Ciências Socias da Universidade do Minho. A ditadura terminara e, com ela, a guerra colonial. “Achavam que Portugal se podia tornar um país como os outros.”

Com a adesão de Portugal à União Europeia, em 1986, os destinos diversificaram-se. Naquela época, a Suíça foi-se tornando o destino preferido dos portugueses. Entre 1985 e 1991, a federação helvética recebeu 59% dos que saíram. No final dessa década, a comunidade era já a terceira maior.

Nem só a pujança da economia explica aquela súbita atracção pela Suíça. Há 50 anos, os suíços meteram os portugueses na lista de trabalhadores de “áreas distantes”, demasiado diferentes para se adaptarem à sua cultura, mas esse estatuto foi revisto com a entrada de Portugal na UE. Iam quase todos com uma autorização de residência sazonal, que lhes permitia trabalhar até nove meses em sectores como a construção, a restauração, a agricultura. Só depois de 36 meses de trabalho podiam solicitar a autorização de residência anual, que consentia a reunificação familiar.

Da emigração permanente à emigração temporária
Em 1991, Maria do Céu Esteves anunciou em livro que Portugal se tornara num país de imigração. Além de cidadãos oriundos dos países de língua oficial portuguesa, que se estavam a fixar desde o 25 de Abril, tinham começado a desembarcar brasileiros e europeus de Leste. Um tanto deslumbrado, o país concentrava as suas atenções na entrada de estrangeiros e ignorava a saída de nacionais.

Bastaria olhar para a estatística oficial. Extinto que fora, em 1988, o registo baseado no "passaporte de emigrante", o INE criara o método da inquirição indirecta. E esse instrumento indicava que as saídas persistiam, embora se tivessem tornado mais temporárias. Em 1993, França, Suíça e Alemanha encabeçavam a lista de destinos. Nela figuravam também o Reino Unido, a Espanha, os EUA e o Canadá.

Nesse ano, Carlos da Silva emigrou. O pai, serralheiro de profissão, fora para a Alemanha. Como não podia levar mulher e filho, decidira tentar a sorte na Bélgica. Encontrara trabalho num restaurante e chamara-os. Carlos tinha sete anos. Foi a primeira vez que andou de avião. Bruxelas era tão diferente da aldeia de Granho, em Salvaterra de Magos. “Na aldeia só havia um carro!”

A adesão de Portugal ao Acordo de Schengen, que entrou em vigor em 1995 e que levou à abertura das fronteiras entre 26 países europeus, teve forte impacte. A emigração permanente diminuía desde os anos 70, mas a temporária subia, explicou João Peixoto. Ainda se pensou que fosse por uma questão estratégica, que começassem por ter estatuto de trabalhadores temporários e, com o tempo, se tornassem trabalhadores permanentes. Depois percebeu-se ser aquela uma nova tendência. A abolição de fronteiras dava maior carácter experimental às migrações.

De repente, até as empresas podiam subcontratar a sua força de trabalho noutro Estado-membro da UE. Milhares de portugueses foram destacados para obras. Os jornais davam notícias de abusos na Alemanha, que registava um forte aumento de portugueses, impulsionado pela reunificação.

Formavam-se novas comunidades. Nenhuma tão explosiva como o Reino Unido. Durante décadas, o fluxo para o Reino Unido foi discreto. Em meados dos anos 1980, seriam 30 mil os portugueses residentes. Com o fim da exigência da autorização de trabalho, houve um estouro. Em 2003, o Reino Unido já batia a Alemanha como pólo de atracção (só a Suíça e a França o venciam).

O fluxo estava muito ligado a sectores da economia impossíveis de deslocalizar, como o comércio, as limpezas, a segurança, a construção, à agricultura ou a indústria agro-alimentar. A maior parte ia através de engajadores, agências privadas de colocação e de trabalho temporário, que se anunciavam na imprensa. Muitos acompanham a internacionalização das empresas portuguesas.

Não eram só facilidades. Aos jornais chegavam notícias de portugueses explorados no Reino Unido, em Espanha, na Holanda e na Islândia. O problema, explicava então Jorge Malheiros, era haver o pressuposto de que a circulação de trabalhadores se faria entre iguais. O caso português era “especial”. Os que saíam eram, na maior parte dos casos, trabalhadores pouco qualificados.

Um país de imigração
Outros vinham ocupar o lugar dos que saíam. Entre 1998 e 2008, o número de estrangeiros residentes passou de 178 mil para 439 mil.

O aumento no movimento de entradas começara a notar-se com o processo de regularização de 1992-93 e acentuara-se com a lei de 2001. E se, primeiro se podia falar em preponderância de cidadãos dos países de língua portuguesa, desde o final da década de 90 aumentavam, a olhos vistos, os da Europa de Leste.

“Os países de destino dos portugueses, habitualmente mais desenvolvidos, sentem algumas necessidades conjunturais de mão-de-obra intensiva e oferecem, mesmo se a par de condições algo precárias, rendimentos aliciantes”, escreveu João Peixoto. As estratégias dos europeus de Leste não seriam muito diferentes. Só que a situação de partida dos portugueses era melhor, o que explicaria terem percursos mais temporários. E a panóplia de destinos maior, por serem cidadãos da União Europeia. Os europeus de Leste iam para onde era menor o risco de expulsão.

Quando a crise estourou, em 2008, os especialistas dividiram-se. Uns sugeriam que, numa situação de crise internacional, regressariam emigrantes e isso teria efeitos na vida dos imigrantes, já que trabalham nos mesmos sectores. Outros sustentavam que não, que quem regressasse dedicar-se-ia a outras actividades.

“Nunca houve evidência, porque nunca houve uma crise tão grande, num contexto de livre circulação”, salientava Jorge Malheiros. Agora, é evidente que os estrangeiros estão a partir e que os portugueses não estão a regressar. Absorveram tanto a “a cultura migratória” que vão para qualquer sítio.

Portugal, como a Espanha, diz João Peixoto, tem um trunfo que a Grécia e Itália não têm: a geografia da língua. Nos últimos anos, inúmeros portugueses procuraram oportunidades no mercado lusófono, sobretudo em Angola. A par da mão-de-obra qualificada, avançam investidores.

Os portugueses emigram para todo o lado, mas apostam mais no espaço comunitário. Procuram velhos destinos migratórios, como a França, a Alemanha, o Luxemburgo. E novos, como a Noruega ou a Dinamarca. A experiência de Jorge Malheiros diz-lhe que os menos qualificados se servem mais das velhas redes de amizade e vizinhança, como nos anos 60 e 70, e que os mais qualificados encontram outras formas de chegar aos desejados postos de trabalho.

“Quando vou aí abaixo, não imagina a quantidade de pessoas que me pedem para as trazer”, conta o talhante, agora reformado, Valdemar Amante. “Já tenho ajudado muita gente que chega sem trabalho.” Em 1973, não lhe custou arranjar emprego no Luxemburgo. Agora, não basta vontade. Há três línguas oficiais – francês, alemão e luxemburguês. Há que falar, pelo menos, uma. E os portugueses já não estão sozinhos a concorrer por postos de trabalho que não interessam aos luxemburgueses.

Carlos da Silva, mestre-de-cerimónias, no Traiteur du Parc Bruxelles, também recebe muitos pedidos de trabalho quando vai visitar os pais à aldeia, à qual regressaram há dois anos, para envelhecer sem stress, a cuidar da casa e da horta, como tinham planeado. Há um ano, conseguiu um lugar para uma prima. “Em Portugal, as pessoas acabam de comer e vão beber uma bica. Aqui, eu vou a um café uma vez por semana, se houver futebol. Falta-lhe isso. Vai voltar para casa.”

“Num aspecto esta emigração é igual à dos anos 60 e 70”, diz Albertino Gonçalves: “Não é uma emigração voluntária, na maior parte dos casos. As pessoas vão porque se sentem empurradas.” Não é só a falta de trabalho ou o trabalho mal pago. “Portugal, hoje, é um país onde não se sonha. E, num país onde não se sonha, emigrar é natural.” Há quem venda tudo e parta, mas, como diz Jorge Malheiros, hoje, nada é tão definitivo como era nos anos 60 ou 70: nem as relações laborais, nem as relações afectivas. E é também por isso que alguns dos que estão a partir podem voltar.

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