O Governo das políticas avulsas

A manchete do PÚBLICO de sexta-feira resumia em duas palavras uma das mais categóricas derrotas políticas do Governo dos últimos meses: “Chumbo unânime”.

Que o Tribunal Constitucional acedesse às dúvidas do Presidente e travasse a convergência das pensões, já se suspeitava.

Mas uma coisa é perder por maioria dos votos, outra é perder por unanimidade. O futebol distingue as derrotas das goleadas, entre ser batido com honra e capitular sem condições. Desta vez não há lugar para normais divergências de opinião nem leituras opostas e legítimas do texto fundamental. Desta vez o TC não só arrasou a convergência como, em tom paternalista, fez questão de orientar o Governo para o que poderá ser uma reforma a sério. Desta vez, ou houve incompetência na forma como o articulado da convergência de pensões foi redigido, ou o Governo sabia que aquele diploma não tinha pés nem cabeça mas mesmo assim aprovou-o só para mostrar serviço à troika.

A “pressa é inconstitucional”, dizia no sábado o editorial do PÚBLICO e é admissível que aquele arrazoado legislativo que o presidente do TC resumiu a “uma medida avulsa” tenha padecido daquele carácter de urgência que afasta o zelo e a ponderação. Mas mais provável ainda é que o Governo tenha usado toda essa pressa e essa falta de prudência como uma estratégia deliberada. Afogado na pressão da troika, aflito pela dificuldade em cumprir as metas do memorando, carente de margem de manobra política e social para encontrar alternativas consistentes e viáveis, o Governo tornou-se mestre em “dar palha ao animal”, como se diz nas zonas rurais. Ou seja, em redigir e aprovar medidas irrealistas só para alemão ver. O tempo da troika não está para visões. Há que sobreviver, um dia de cada vez.

Esta atitude não é de agora e leva-nos para um dos grandes absurdos dos nossos dias. O de vivermos uma política de fantasia. O Governo, a troika, a oposição, os empresários e os trabalhadores, enfim todos nós, sabemos que muito do que é proposto para cumprir o memorando é irrealista e inviável. Mas nem por isso se joga na sensatez da prudência em vez de se apostar no conforto da mentira. Um acórdão que recolhe a censura de juízes da esquerda e da direita, os nomeados pelo CDS e pelo PCP, devia fazer corar de vergonha o corpo jurídico que lhe deu forma e o Governo que politicamente o propôs. Mas, neste tempo de desorientação, há quem prefira viver sob o efeito da fé e dos barbitúricos do que reconhecer que a manobra dilatória própria de quem varre o lixo para debaixo do tapete nunca foi solução para coisa nenhuma.

Passos quer agora alternativas que não comprometam a tímida recuperação e vale a pena perguntar por que razão não o fez mais cedo. Uma das explicações possíveis está no facto de Passos e Portas se terem tornado viciados da política avulsa. Isto para o défice, aquilo para os professores, aqueloutro para a economia. Alguém sabe onde pára o guião para a reforma do Estado que Portas anunciou há mais de mês e meio? Já nos esquecemos do chumbo e das cíticas do Tribunal de Contas aos resultados do PREMAC, a grande reforma do Estado deste Governo? Pensava-se que depois das dúvidas e das críticas da troika na sétima avaliação Passos e Portas se dedicariam finalmente a encontrar estratégias globais em vez de continuarem a perigosa política de pesca à linha. Engano.   

“As coisas, em Portugal, acalmaram”, escreveu, no Sol, António José Saraiva, mas só por impenitente optimismo se pode acreditar nisso. Talvez seja mais provável a expectativa de Ricardo Costa, que no Expresso considerava estarmos “de regresso a Maio, à célebre sétima avaliação da troika, onde tudo se complicou, para o orçamento, para o Governo e para os portugueses”. Mais impostos sufocarão a economia, um corte geral nos reformados obrigará Paulo Portas a confrontar-se com as “linhas vermelhas” que traçou no passado. E pelo meio, até um dos mais consistentes e assertivos (goste-se ou não das medidas) secretários de Estado do Governo, Hélder Rosalino, se demitiu. Exactamente no dia em que o TC anunciou a sua decisão. Passos Coelho está mais vivo do que nas férias do Verão, mas, tal como o ajustamento, titubeia em direcção ao Portugal pós-troika. Quem governa por decretos avulsos, sofre por fracassos avulsos.

2 – Rui Moreira não perdeu tempo a avançar com a sua “rede de cidades”. A Frente Atlântica que gizou com os congéneres de Gaia e de Matosinhos para os financiamentos do próximo quadro comunitário de apoio é uma iniciativa inteligente e sensata. Depois de 12 anos em que a mesquinha rivalidade pessoal entre Rui Rio e Luís Filipe Menezes travou toda e qualquer iniciativa destinada a servir dois municípios que, no quotidiano, só são separados pelas barreiras administrativas, a cooperação revela uma nova forma de estar.

Esta semana os três autarcas juntaram-se em defesa do Centro de Produção do Porto da RTP. Não é a primeira vez que se ouvem exigências em favor da preservação da capacidade operacional e da autonomia da RTP no Norte. Só que desta vez ouve uma articulação com entidades fora da esfera política que auguram um tempo novo no eterno protesto do Porto e do Norte contra os excessos da centralização política. Depois da Frente Atlântica, vieram a terreiro Serralves, a Associação Empresarial de Portugal e as universidades do Norte e do Centro subscrever essa mesma exigência.

Como seria de esperar, a acção da Frente Atlântica mereceu críticas de outros autarcas. O ciúme paroquial não se extingue numa simples mudança de ciclo político. Mas, à margem dessas vozes, há algo de novo a surgir na política nortenha. Há uma liderança, que Moreira recusa assumir por completo, há um presidente da Comissão de Coordenação Regional, Emídio Gomes, com credibilidade e conhecimento, há uma visão nova e há uma capacidade de mobilização que não havia desde que Fernando Gomes deixou a Câmara do Porto. Mesmo sem regionalização, o Porto e o Norte podem estar a conceber um fórum de intervenção que promete refazer o quadro de permanente paz podre política nas relações com a administração central.

3- Afinal António José Seguro e Pedro Passos Coelho são capazes de se entenderem. Eles não só falam como foram capazes de se pôr de acordo numa reforma de largo alcance como a do IRC. Depois desta admirável (em Portugal) disposição para o compromisso, surgiu de imediato a não menos admirável propensão nacional para se ver quem ganhou e quem perdeu. No sempre indispensável Quadratura do Círculo da SIC Notícias, António Costa expôs o espírito partizan que corrói o PS dizendo não achar “normal que haja acordo sobre esta matéria e não haja acordo sobre o IRS ou a redução do IVA” – poderia ter ido mais longe e citado o desacordo em todas as outras inciativas do Governo ou do secretário-geral do seu partido. 

O que este debate e esta divergência acusa é, afinal, a eterna propensão para cumprirmos o destino de país que nem se governa, nem deixa governar. Avaliar o que se passou a pensar numa putativa vitória de Seguro ou de Passos é ceder aos enredos das novelas partidárias e esquecer o fim último da política.  
 

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