Questionário do Patriarcado: enigmas

Preferia que os lisboetas não tivessem ficado encerrados em respostas pré-fabricadas, que podem enviesar os resultados do questionário.

O Patriarcado de Lisboa terá recebido quase 14 mil respostas ao designado inquérito sobre “a” família do Papa Francisco (PÚBLICO, 13/12). Embora alguns dados sociológicos fossem necessários para avaliar a importância deste número, ele parece ser assinalável.

Apesar disso, creio ser legítimo interrogar o modo como o Patriarcado resolveu disponibilizar o inquérito para resposta online. É que, até certo ponto, o Patriarcado decidiu fazer uma versão própria do questionário. Não que as perguntas do inquérito provindo do Vaticano não estivessem basicamente lá, mas, para a resposta, em vez dos “rectângulos” em branco dos inquéritos online inglês, do nosso religionline, ou do da minha arquidiocese de Braga, que incentivam a livre expressão, vimos acima de tudo respostas pré-fabricadas em que só se tinha de colocar um “visto”. Mas comecemos por uma questão prévia.

O Patriarcado escreveu que “apenas um questionário pode ser respondido por computador”. Admito legitimidade nessa pretensão de segurança – embora no nosso país seja mais de temer a indiferença cívica do que as tentativas de sabotar um inquérito -, mas não posso aceitar que a única solução encontrada para impedir a fraude tenha sido dificultar a vida de quem queria responder.

Se numa casa existem quatro católicos e um único computador, haveria que procurar três ateus ou agnósticos compreensivos, ou três católicos não-respondentes, que lhes cedessem o uso do computador (por uns 60m, supunha o Patriarcado, nessa versão simplex). Neste país, quando se trata de informática parece que nem o Patriarcado nem o Dr. George (acerca do Registo Nacional de Directivas Antecipadas de Vontade) conseguem encontrar as soluções mais produtivas. Já experimentaram recorrer aos serviços das Universidades, enquanto ainda funcionam? Que uma pretensão securitária não assumida passe à frente dos legítimos interesses dos católicos em responder ao inquérito é algo que não entendo.

Por outro lado, muitas das respostas pré-fabricadas direccionavam. Seria preferível que, por ex., as pessoas falassem de aborto, práticas abortivas e “ideologia de género” se quisessem, mas que, à partida, não as inclinassem nesse sentido.

Acresce a isto que a versão portuguesa do inquérito, vinda diretamente de Roma, revela vários descuidos de linguagem. Veja-se a pergunta 8.c. (a 57 do Patriarcado): “Em que medida as crises de fé, pelas quais as pessoas podem atravessar, incidem sobre a vida familiar?”. Que interessa que este português tenha vindo directamente de Roma se está mal redigido? Veja-se também a pergunta 42 do Patriarcado: “Qual o conhecimento real que os cristãos da Humanae Vitae, a respeito da paternidade responsável?”. No texto da versão portuguesa, temos: «7. a) Qual é o conhecimento real que os cristãos têm da doutrina da "Humanae Vitae" a respeito da paternidade responsável?».

E ainda a propósito de linguagem, veja-se o deslize das versões portuguesa, francesa, italiana e espanhola para a “ideologia de género”, habitual na Igreja: “paternidade” e não “parentalidade”, como se a mulher fosse um mero recipiente da “semente” do homem, na linha de Aristóteles; “homem” e não “ser humano”. Só as versões inglesa e alemã (entre as línguas que conheço) usam uma linguagem não-sexista: human person, Mensch, parenthood, Elternschaft.  

Gritante é a redacção dada ao ponto 1.b da versão portuguesa, que, logo de início, transforma uma pergunta numa afirmação de caráter tendencioso: “Onde é conhecido, o ensinamento da Igreja é aceite integralmente. Verificam-se dificuldades na hora de o pôr em prática?”. Compare-se com a versão espanhola (ou qualquer uma das línguas que referi) e tirem-se as conclusões: “Allí donde se conocen las enseñanzas de la Iglesia ¿son éstas integralmente aceptadas? ¿se verifican dificultades para ponerlas en práctica?”. Aqui, até certo ponto, o Patriarcado tentou emendar.

Em resumo, a meu ver, teria sido preferível que os lisboetas pudessem ter expresso livremente a sua voz, sem ficarem encerrados em respostas pré-fabricadas, que podem enviesar os resultados do inquérito.

Docente aposentada da Universidade do Minho (laura.laura@mail.telepac.pt)

 

 

 

 

 

 

 

 
 

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