Ainda a “estranha” entrevista de Pedro Passos Coelho

A “saída” do programa e as perspectivas para o futuro vão depender, em última análise, do que acontecer ao nível europeu. Estranhamente, não houve uma palavra sobre isso na entrevista do primeiro-ministro.

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1. Devo confessar que a entrevista de Pedro Passos Coelho à TVI e à TSF na quinta-feira (que tive de comentar a “quente”) me deixou perplexa. Por uma vez, o primeiro-ministro podia ter uma mensagem um pouco mais positiva sobre o futuro imediato do país. Mesmo que nestes tempos que correm as certezas sejam sempre incertas, a verdade é que a “espiral recessiva” que todos prognosticavam (incluindo eu) parece que não aconteceu. Podem descobrir-se imensas razões para esse facto. Mas é preciso olhar para a realidade tendo-o em consideração.

A economia começou a crescer. O desemprego está a cair, mesmo que devagar. A produção industrial aumentou e a criação de empresas também. Claro que estes indicadores devem ser olhados a partir da situação de partida, que não podia ser pior. Mesmo assim, vão no sentido positivo, permitindo ao primeiro-ministro afastar a hipótese desastrosa de um segundo resgate e considerar de forma mais confortável as modalidades de “saída” do ajustamento: à irlandesa ou recorrendo a um programa cautelar (mais ou menos soft).

Ora, Pedro Passos Coelho não se agarrou a estes dados positivos para apresentar uma visão de mais longo prazo para o pós-troika, que é o debate que temos hoje que fazer a sério. Pelo contrário, resolveu dizer que o programa de ajustamento português, sendo a boa receita, estava desde início “mal calibrado”, responsabilizando Sócrates por esse facto. E não o fez por acaso. Tinha dito a mesmíssima frase na entrevista que deu ao Negócios três dias antes, o que significa que queria passar essa mensagem. Distorceu a realidade: o PSD não podia deixar de saber que o défice era maior do que parecia quando negociou com o Governo do PS; Catroga vangloriou-se pela marca do PSD no programa de ajustamento; e, finalmente, o próprio primeiro-ministro fez dele o programa de transformação radical que tinha para o país e que, noutras circunstâncias, teria muita dificuldade em defender. Fica a pergunta: porque é que voltou à vaca fria?

Ou não tem mais nada para dizer aos portugueses, o que é mau, ou não quer dizer mais nada antes da decisão do Tribunal Constitucional (TC) sobre a convergência das pensões ou sobre outras medidas do Orçamento para 2014. Falta-lhe esse dado fundamental para tomar uma decisão sobre o fim do programa, até porque, antes das decisões do TC, é provável que as taxas de juro da dívida portuguesa não saiam de onde estão (à roda dos 6% a 10 anos, quando as da Irlanda, que hoje abandona o programa, estão a 3,5%). Seja como for, não se compreende que não tenha feito a agulha para o futuro.

2.

O segundo aspecto em que Passos foi igual a si próprio foi sobre a necessidade de consensos mais alargados para o médio prazo. O líder do PSD não perde uma oportunidade para mostrar que não precisa dos socialistas para nada. Este é outro dos seus “mistérios”. Quando chegou ao poder, em 2011, ele e a sua equipa de conselheiros ideologicamente radicais e convencidos de que estavam incumbidos de salvar a Pátria (mesmo que não tivessem a mínima ideia do que era a Pátria) não queriam qualquer entendimento com ninguém que lhes estragasse a “teoria” e a oportunidade para a passar à prática. Passos era “a man with a mission”. Com a arrogância inerente. Hoje, provavelmente, já terá percebido que a missão não estava ao seu alcance. Mas não era preciso dizer que o eventual programa cautelar “de um ano” (afinal já o anda a negociar) dispensava o Partido Socialista. Se tivesse alguma ideia sobre a melhor maneira de sairmos daqui, perceberia que os consensos vão ser fundamentais (como o foram, por exemplo, na Irlanda). 

A entrevista também serviu para demonstrar a tibieza com que o Governo negoceia com a troika. Como António Costa disse na última Quadratura do Círculo, as declarações de Christine Lagarde sobre os erros dos programas de ajustamento poderiam merecer do primeiro-ministro uma reacção qualquer menos aquela que teve ao considerar “estranho” o comportamento da directora do FMI. O líder de um país que está há três anos a comer o pão que o diabo amassou só podia criticar duramente a irresponsabilidade da responsável política pelo Fundo e, ao mesmo tempo, dizer aos senhores da troika umas tantas verdades. Não o fez, provavelmente, porque aderiu de alma e coração ao “ajustamento brutal” (mal calibrado, diz ele agora, quando já é tarde), e reduziu a diplomacia nas capitais europeias a menos que zero. Não foi esse o comportamento de outros países, incluindo a Irlanda. Esse também é um erro pelo qual Passos terá de pagar um preço quando negociar a saída.

3.

O próximo ano vai ser ainda de enormes sacrifícios para os portugueses. Sobre isso ninguém tem dúvidas. A “saída” do programa e as perspectivas para o futuro vão depender, em última análise, do que acontecer ao nível europeu. Estranhamente, não houve uma palavra sobre isso na entrevista. Ora, enquanto o financiamento da economia portuguesa pagar taxas de juro três ou quatro vezes superiores às alemãs, holandesas ou finlandesas, a economia só dificilmente crescerá ao ritmo que a própria dívida pública exige para ser sustentável. Esta é a questão fundamental: o crescimento. Também aqui é preciso um debate europeu que permita a conjugação das regras de disciplina orçamental (que estão no “Tratado Orçamental” que Portugal ratificou, incluindo o PS) com as condições do crescimento. Como disse recentemente Maria João Rodrigues, a Europa nunca funcionará quando o desemprego jovem for de 6% na Alemanha e 60% na Grécia. São as condições de convergência real da economia europeia que temos de discutir.

Até agora, as reformas tão apregoadas pelo Governo tiveram essencialmente como alvo o mercado laboral, os direitos dos trabalhadores e a redução da segurança social. O Estado está mais ou menos na mesma, como demonstra a auditoria do Tribunal de Contas. Os ministérios, como disse o próprio ministro Poiares Maduro, parecem governos autónomos (cito de memória), com muito pouca redução da despesa através da eficácia. Ou seja, está ainda muito por fazer, mas que é obrigatório fazer depois da saída da troika. Com o diálogo político reduzido ao insulto, com a ausência de uma ideia sobre a Europa de que precisamos, é difícil perceber onde nos leva esta dose brutal de austeridade e como vamos recuperar. Não basta que o primeiro-ministro diga que o seu modelo não é o da mão-de-obra barata. Tem de dizer qual é e ver se é compatível com os cortes brutais nas políticas científicas e tecnológicas (que podem destruir um capital extraordinário que Portugal adquiriu nas últimas décadas porque teve uma política consistente para o sector), empurrando os melhores para fora do país. Tem de dizer quais devem ser as apostas nacionais para aumentar a competitividade da economia não por via da redução dos custos do trabalho mas pela inovação e pela capacidade de atracção de bom investimento estrangeiro. Não chega, mais uma vez, ao primeiro-ministro dizer que basta a redução do peso do Estado para o dinheiro ir para a economia. Era assim quando se olhava para o Estado, como um embaraço à livre e perfeita concorrência dos mercados, mas já nem Alan Greenspan acredita nisso. Era esse o debate que o país devia estar a fazer.

Mas não. Paulo Portas desapareceu do radar com a sua reforma do Estado a que ninguém ligou. De vez em quanto reaparece para anunciar que o “1640” está quase a chegar. Daria para rir se não fosse uma imagem falsa e perigosa do país face à Europa. Começou pelo “protectorado”, coisa que nenhum ministro de nenhum governo jamais devia dizer, quanto mais não seja por uma questão de dignidade. Só nos falta saber, por mera curiosidade, quem são a duquesa de Mântua e Miguel de Vasconcelos. Dava um bom programa na televisão. 

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