Uma estranha noite portuguesa

O Estado de direito não se desfez na quinta-feira à noite, mas a excepção criada abriu um precedente de enorme força simbólica.

Quase em simultâneo, na quinta-feira à noite o país assistiu a duas manifestações peculiares. Numa, polícias, guardas-republicanos e outras forças de segurança mostraram que a “lei e a ordem” são válidas para todos menos para quem usa uma farda.

Na outra, uma elite anti-Governo – com estrelas do PCP, Bloco de Esquerda, PS e até PSD – fez uma manifestação numa sala de espectáculos, sentada em cadeiras confortáveis, das quais gritou “gatuno! gatuno!” à medida que os nomes do Presidente e do primeiro-ministro iam sendo repetidos.

Na rua, dez mil polícias forçaram as grades que marcavam o perímetro de segurança desenhado para proteger a Assembleia da República e empurraram os colegas polícias destacados para garantir o cumprimento da lei. Os polícias “de serviço” acabaram por deixar os polícias à civil subir até à “porta sagrada” do Parlamento, como lhe chamou ontem Assunção Esteves. O Estado de direito não se desfez na quinta-feira à noite, mas a excepção criada abriu um precedente de enorme força simbólica. A partir de agora, todos os que ali se manifestarem vão exigir o mesmo: uma interpretação liberal, flexível e casuística das regras. As escadarias da Assembleia da República – a casa das leis e da democracia – passaram a ser um lugar onde, às vezes, não se cumpre a lei. A polícia perdeu poder dissuasor, “autoridade” e “prestígio”, reconheceu o próprio primeiro-ministro. Dirão: os polícias também são cidadãos e também estão contra o Governo. Mas com que legitimidade vão amanhã exigir que outros respeitem as leis? E, mais difícil ainda, como vão justificar uma futura “carga”? Não vale a pena tentar desviar o debate e discutir se a barreira de segurança “recuou” para abrir caminho aos polícias em protesto, ou se foi “forçada”. O director nacional da PSP fez bem em demitir-se e Passos Coelho em dar um sinal de que o que aconteceu não pode repetir-se.

Na Aula Magna, os olhos estiveram postos nas escadarias da Assembleia. Falou-se de uma quase inevitabilidade de violência por causa da crise, sabendo bem quem o disse que não há tradição de violência em Portugal, nem sinais de que tal esteja a mudar. As palavras de Mário Soares e de Helena Roseta foram aplaudidas mas, como a polícia no outro lado da cidade, não ficarão na história como ideais de mudança. E estão certamente longe dos ensinamentos da “força tranquila” que marcou a história da nossa democracia.
 
 
 

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