A janela-relíquia do canto sueste

Pode uma janela que foi esconderijo de um assassino ser mercadejada como relíquia macabra? Pode. E pode um museu condicionar o acesso dos visitantes por meio de um singelo questionário? Provavelmente, não.

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A janela do canto sueste é um íman, um dínamo para as multidões. É ali que a densidade de visitantes no museu é máxima, tudo o resto ali exposto só existe para conduzir as pessoas até àquele canto, até à muralha de caixotes atrás da qual Oswald se escondeu para disparar ao meio-dia e meia hora sobre o carro do presidente.

Ainda antes de entrar no Sixth Floor Museum, perguntei a mim mesmo como é que o museu lidaria com este problema, qual a solução encontrada para refrear, disciplinar, temperar a curiosidade de quantos pagam bilhete e querem aproximar-se o mais possível da tal janela. A janela onde se concentra toda a energia do século XX americano, uma pulsão trágica ou absurda. Trágica se acharmos que Oswald foi mero parafuso na engrenagem de uma conspiração bem mais vasta, arquitectada por gente poderosa com o intuito de remover da presidência uma figura incómoda. Absurda se virmos em Oswald uma figura solitária e tresloucada, sem propósito discernível, um homem perdido a querer deixar a sua marca na história apenas porque sim. Mas, quer num caso quer no outro, quem resiste a aproximar-se da nascente de onde mana um tal caudal de tragédia ou de absurdo?

Talvez o museu tivesse vedado aquele canto com cordões, pensei, e deixasse as pessoas aproximarem-se à vez, caso houvesse muitas, para que não se acotovelassem ali. Mas o espaço é exíguo, quando Oswald dispôs os caixotes não teve em conta as necessidades da circulação desafogada dos corpos humanos. Não teve em conta a posteridade, em suma. Formar-se-ia necessariamente uma enorme fila de espera, dando àquele canto uma aparência indigna de caixa de supermercado em dia de grande afluxo de clientela, espicaçando a impaciência dos visitantes e gerando reacções em cadeia de comportamentos irresponsáveis. Ocorreu-me a possibilidade de um sistema de senhas, mas os paralelismos com o balcão de um talho ou de uma peixaria logo me fizeram pôr a ideia de parte.

Chegado ao museu, verifiquei que a solução encontrada foi bastante radical, mas também bastante prática. Há painéis de acrílico até ao tecto a vedar o acesso ao canto sueste, que forma assim uma espécie de aquário suspenso no tempo, parado naquele dia 22 de Novembro de 1963, albergando a janela e o ninho do atirador.

A janela do atirador? Bom, talvez não... Este edifício mudou de mãos várias vezes até 1989, quando o museu foi aqui instalado. Durante muito tempo, pertenceu a um homem chamado Harold Byrd, mas houve um pequeno hiato de dois anos em que esteve na posse de um outro chamado Aubrey Mayhew. Em 2007, este anunciou subitamente ser o proprietário da verdadeira janela, que extraíra do respectivo vão e substituíra por uma réplica, e propôs-se vender a original num leilão online. O filho de Byrd veio ripostar que era ele próprio o possuidor da janela genuína, afirmando que o pai tivera o cuidado de a remover do edifício e de a substituir por uma réplica antes de ceder o prédio para a criação do museu. E, como não podia deixar de ser, propôs-se também... pôr à venda a sua janela através de um leilão na Internet. Seguiu-se uma batalha judicial, um choque de titãs cujo resultado permanece ainda incerto. E, embora o tal Mayhew tenha morrido entretanto, haverá certamente herdeiros interessados em prosseguir a luta.

Provavelmente, a um fanático endinheirado só restará, por via das dúvidas, adquirir ambas as janelas e montá-las lado a lado na sua casa, debruçando-se alternadamente numa e noutra para se sentir plenamente na pele de Oswald. Da vidraça não se avistará a Elm Street nem a Dealey Plaza, mas que importa? Há neste comércio qualquer coisa de medieval, a que não falta sequer o pormenor da reprodução grotesca de falsas relíquias. A multiplicação de janelas do canto sueste do sexto piso do Depósito de Manuais Escolares do Texas faz lembrar a multiplicação de pedaços do Santo Lenho, os tais que dariam para uma floresta inteira de cruzes.

À noite, no quarto do hotel, discuto com Peter Josyph, meu amigo e fotógrafo nesta expedição, quais os possíveis métodos para permitir o acesso de alguns eleitos ao ninho do atirador. Já que não se pode franqueá-lo a todos, ao menos que alguns pudessem acercar-se, debruçar-se da janela, tocar com as mãos no parapeito, nos caixotes. Um sorteio? Demasiado aleatório... Seria preciso introduzir um elemento de mérito no acesso àquele canto. Um teste com três perguntas? Debatemos quais as perguntas, chegamos a consenso. Primeira: "Onde e com quem é que Oswald dormiu na noite da véspera daquele 22 de Novembro?" Segunda: "Diga o nome do único homem que se gabava de ter conhecido pessoalmente o casal Kennedy e Oswald antes do atentado." Terceira: "Que idade tinha Oswald quando o pai morreu?" Haveria ainda uma pergunta adicional, dando direito a fotografar a janela: "O que é que Nixon respondeu a um senador republicano que lhe perguntou o que é que ele sabia acerca do assassínio de JFK?"

E para que todos os que me lêem possam ter acesso à janela que talvez nem seja a genuína, na remota eventualidade de a direcção do Sixth Floor Museum, que irá ser totalmente remodelado após as cerimónias do quinquagésimo aniversário do atentado, acolher como válida esta minha singela sugestão, fica aqui escrito que a resposta à primeira pergunta é: "Em casa de Ruth Paine, em Irving, com a mulher, Marina." À segunda: "Truman Capote". À terceira (com rasteira): "Oswald nasceu órfão de pai." E quanto à pergunta adicional, a resposta é: "Acredite em mim: o senhor não quer saber."


Esta é a última de uma série de crónicas de Paulo Faria, autor do texto Oswald passou por aqui, publicado no domingo na revista 2.



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