Whiskey, sumo de laranja e um emir

Se a América é a terra das oportunidades, não espanta que ao virar de uma esquina, numa pensão texana, se perfilem ofertas de emprego das arábias. Será aconselhável comparecer de calções diante do emir?

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– Não estou a beber whiskey. Quando bebo sumo de laranja, ou me enchem o copo até acima ou é melhor estarem quietos.

Mal viu o copo cheio com sumo de laranja somente até a meio, o tom de voz do homem, até então mais ou menos cordial, endureceu num abrir e fechar de olhos, dando-nos a ver o seu eu doméstico, de roupão e pantufas, a falar com a criadagem.

O alvo do remoque fui eu próprio, ajudante ocasional da empregada do Bed & Breakfast (B&B) onde estávamos hospedados, armado em benemérito distribuidor de sumo de laranja natural, com a minha incompetência sublinhada a traço bem grosso. Assim instruído um pouco à bruta acerca das diferenças abissais entre o modo de servir whiskey e o modo de servir sumo de laranja natural, duas alternativas me restavam: a fleumática e a belicosa.

Achando que não valia a pena provocar um incidente diplomático entre Portugal e o Dubai em plena vastidão texana, na obscura cidade de San Marcos, optei pela elegância e, tornando a estender o braço, enchi-lhe o copo até à borda, proferindo um "Ah, com certeza" a que tentei conferir uma entoação o mais irónica possível.

Perguntará o leitor onde estava o empregado. Não era um empregado, mas sim uma empregada, uma só, já que o B&B não era muito grande, e estava na casa de banho a vomitar, tremendamente maldisposta. Eu e o meu amigo e companheiro de viagem Peter Josyph armámo-nos em cavalheiros, fomos à cozinha buscar as vitualhas e começámos a servir-nos e aos restantes hóspedes, que eram somente mais dois além de nós. Vendo que o jarro de sumo estava somente meio cheio, fiz um rápido cálculo mental e percebi que, caso enchesse os quatro copos até ao cimo, não sobraria sumo para o último (ah, o meu maldito cavalheirismo). Daí o remoque com que fui brindado.

Tínhamos travado conhecimento com o consumidor desenfreado de laranja espremida naquela mesma manhã, ao entrarmos na sala de refeições do B&B. Os manuscritos de Cormac McCarthy esperavam-nos na sala de leitura das Wittliff Collections, na biblioteca da Universidade do Texas em San Marcos, queríamos aproveitar ao máximo o nosso dia, foi também por isso que vestimos a pele de cavalheiros e nos pusemos a trazer da cozinha o sumo e o café, os pãezinhos e o doce. Não eram assim tão puras, afinal, as nossas motivações.

O tal homem que não suportava copos de sumo de laranja mal cheios era libanês de nascimento, radicado no Dubai há muitos anos. Quando lhe perguntei se havia no Dubai alguma agitação social, na esteira da Primavera Árabe destes últimos anos, ou seja, em linguagem chã, se estava a haver problemas no Dubai, a resposta veio, pronta e seca: "O único problema deles é não saberem o que hão-de fazer a tanto dinheiro." Era vice-reitor da Universidade Americana do Dubai. Pouco depois, entrou na sala o reitor, dando à conversa um cariz mais institucional e pondo fim aos sarcasmos vagamente azedos do seu colega. O adjectivo "americana" no nome da universidade que eles dirigiam não correspondia a nenhuma marca de cariz institucional. A universidade era "americana" como teria sido "francesa" se estivéssemos nos alvores do século XX — porque é da América que provém uma certa luz, como outrora de França.

Por entre críticas à juventude dos países árabes que poderiam sair da boca de um qualquer ocidental médio ("Só pensam em telemóveis", "Não lêem um único livro", etc.), perguntaram-nos o que fazíamos na vida. A minha actividade de tradutor literário português (e péssimo servidor de sumo de laranja nas horas vaga, já agora) não lhes mereceu grande interesse, mas já a resposta do Peter ("escritor/actor/cineasta/pintor") os fez arquear as sobrancelhas. Logo sacaram de um enorme folheto colorido contendo o plano de estudos da universidade e começaram a debater empenhadamente com o Peter onde é que ele se poderia encaixar como conferencista. "Teatro? Não, não temos cursos de teatro. Literatura... pois é, também não. Estamos mais vocacionados para a área da gestão e das finanças. Temos um curso de audiovisual, mas lida mais com a televisão..." De súbito, o reitor recostou-se na cadeira e disse ao Peter com o ar mais sério do mundo: "Sabe o que é que o meu amigo podia fazer, já que é escritor? Podia redigir a biografia do nosso emir em inglês. Ainda ninguém abraçou essa tarefa." E, sem transição de espécie alguma, reitor e vice-reitor começaram a louvar as imensas qualidades do emir do Dubai: "Para ele não há dificuldades, somente desafios. Para ele, a palavra impossível não existe."

Parece que em Wagram vieram dizer a Napoleão que era impossível às tropas romperem as linhas prussianas, ao que o Petit Caporal terá retorquido que "impossível não é uma palavra francesa". Chamar "Bonaparte das Arábias" ao adorado emir talvez caísse mal naquela sala, e refreei-me a tempo.

O pequeno-almoço estava a chegar ao fim, a empregada fizera duas ou três aparições, mais morta do que viva, o árabe e o libanês deram-nos cartões de visita e disseram ao Peter que, caso estivesse interessado em vestir a pele de cronista régio, deveria entrar em contacto com eles, e, uma vez acertados os pormenores, teria um bilhete de avião à sua espera, 16 horas de viagem sem escala até ao Dubai, num voo que passa junto ao Pólo Norte. "O meu amigo vai até lá, nós apresentamos-lhe o emir, e se ele gostar de si você fica por lá uns meses e escreve a biografia dele." Ficou vagamente em aberto a possibilidade de eu acompanhar o Peter como secretário.

Terminada a refeição, eles saíram da sala e esperaram no jardim pelo carro que os viria buscar. Eu e o Peter vimo-los parados lado a lado, de costas para nós, atrás da enorme vidraça da janela. Num último assomo de cavalheirismo, decidimos levantar a mesa, poupando a empregada a mais umas quantas deambulações nauseadas. Todavia, estávamos bem cientes de que, caso os dois responsáveis da Universidade do Dubai nos vissem a executar aquela tarefa, cairiam por terra todas as possibilidades de o Peter viajar até ao país das ilhas artificiais em forma de palmeira.

Se é já difícil de entender que alguém ponha a mesa, substituindo-se à empregada, levantar a loiça suja é coisa de serviçais inveterados, e eles certamente não iriam querer um lacaio a escrever a biografia do seu emir. Um nova-iorquino (e um português, lá por isso) com alma de escravo seria indigno de servir a realeza em tão nobre tarefa. Cientes do perigo, decidimos levantar a mesa em surtidas rápidas, precipitando-nos para a cozinha com a loiça suja nas mãos, em deliciosas peripécias dignas de uma dupla de Mr. Beans, atentos à menor rotação daquelas cabeças e daquelas espáduas do outro lado do vidro, não fossem eles voltar-se de repente e surpreender-nos, apercebendo-se da nossa natureza arreigadamente subalterna.

Tudo correu bem, no fim de contas, não obstante alguns sustos chaplinescos, e ao sairmos juntos para o arquivo a brisa matinal acolheu-nos e sorrimos os dois, cientes de que o sonho da riqueza e da fama estava ainda intacto, à simples distância de um email.

– Faça favor, senhor cronista – disse-lhe eu à entrada da sala de leitura, estendendo o braço numa vénia profunda.

– Depois de si, senhor secretário – disse-me ele por sua vez, curvando-se também.

E rimos os dois com gosto. Acho que o Peter não vai mandar o tal email.

Esta é a quarta de uma série de crónicas de Paulo Faria, autor do texto Oswald passou por aqui, publicado no domingo na revista 2.
 



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