Dallas, cravo e canela

Vista do tabuleiro de uma ponte modernista de linhas arrojadas, a caminho da Dealey Plaza, a baixa de Dallas evoca os horrores dos anos 1980 e memórias de infância. Sónia Braga e Pamela Ewing não têm, de facto, comparação.

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Rodamos pela ponte desenhada por Santiago Calatrava, que transpõe o rio Trinity para dar acesso à baixa de Dallas, e vejo lá adiante, recortado contra o céu, o paliteiro cintilante dos arranha-céus. E por muito que resista, e acreditem que tento resistir, assoma-me ao espírito a imagem do genérico da série Dallas, aquele plano das torres de escritórios rutilantes e modernas, a música de fundo cheia de ritmo a prometer coisas febris, peripécias rocambolescas entre magnatas do petróleo, o sotaque texano que nos entrou pela sala dentro nos idos de 1980. A série era péssima mas nós víamo-la, era sempre assim, víamos as maiores porcarias para podermos dizer mal daquilo no dia seguinte aos colegas de turma, no Liceu Camões, num exercício de fascínio masoquista, e não sei se os criadores da série participavam deste exercício, tomara que sim, tomara que aquilo ao menos lhes desse algum gozo, nem que fosse doentio, porque o resultado era mesmo mau.

O vilão era o JR Ewing, o actor morreu há uns anos e lá saiu a notícia em todos os jornais, sempre com um sorriso maléfico que parecia um esgar, e depois havia um cortejo de fulanos com chapéus enormes de cowboy e botas enormes de cowboy e gravatas de fio à cowboy, todos com ar de parolos ignorantes. Todas as coisas ocupam espaço, e cada porcaria que vem ao mundo impede que surjam umas quantas coisas boas no seu lugar porque lhes rouba espaço e lhes suga o oxigénio, mas nós víamos o Dallas avidamente, num prazer masoquista. Se calhar era por causa das mulheres, havia a Pamela Ewing, pois claro, a cunhada do tal JR, que era bem engraçada, era muito mais do que engraçada, aliás, era “aleijadinha de boa”, como dizia um colega meu, e também andava sempre de botas de cowboy e de chapéu de cowboy, e havia outra baixota, ridiculamente baixota, uma espécie de Pamela em anã, também de mamas espetadas e camisa amarrada na cintura e chapéu de vaqueira, está bem de ver, e ainda havia a Barbara Bel Geddes já bastante entradota, a fazer pela vida, saída d’A Mulher Que Viveu Duas Vezes para dar uma certa caução cinematográfica àquela bodega toda. Claro que a Barbara Bel Geddes não entrava nas nossas conversas só para rapazes no pátio do Camões.

Num dos episódios, a Geddes descobriu que tinha cancro de mama e houve uma cena em que se sentou em frente ao espelho do toucador a agarrar as mamas com as mãos e despediu-se delas a chorar, deve ter sido um rasgo de ousadia vanguardista da parte dos escritores da série, devem ter achado que estavam a fazer “arte”. E ainda havia a Sue Ellen, que era a mulher do tal JR e que ele encornava alegremente, por isso ela metia-se nos copos, tinha uns olhos esbugalhados e não era tão mamalhuda como as outras duas vaqueiras de trazer por casa, nas tais conversas do pátio do Camões também entrava pouco, era uma espécie de medalha de bronze das conversas dos intervalos, a larga distância das campeãs, e de dez em dez episódios o JR pedia-lhe “mais uma oportunidade” com o seu sorriso porcino e ela cedia, claro, era uma mulher perturbada mas sensível, e passavam os dois uma noite romântica, mas no final do episódio seguinte já ele a tinha encornado outra vez e já ela andava outra vez com uma bebida a reboque logo pela manhã.

E os criadores da série queriam que nós acreditássemos que o Texas era aquilo e que existia gente assim, ou talvez quisessem apenas que suspendêssemos o nosso sentido crítico e que mergulhássemos de cabeça naquela narrativa informe e pueril. A família Ewing vivia toda encafuada na mesma casa, um rancho com cavalos. Para tratar dos negócios iam a Dallas, aos tais arranha-céus cintilantes que agora vejo ao longe, enquanto o carro rola pela ponte de Santiago Calatrava, mas para morar preferiam o rancho, e agora que penso nisso estava-se sempre a falar de petróleo naquela história mas não aparecia assim muito petróleo, não se viam os poços nem o petróleo em si, o que importava era o dinheiro do petróleo, aquela gente a rebolar-se no dinheiro do petróleo.

Eram podres de ricos mas viviam todos encafuados na tal casa, uma casa com uma escada enorme para o primeiro andar, e passavam a vida a ir até aos quartos mudar de roupa para o jantar em família, e não havia episódio nenhum em que não se cruzassem duas personagens na escada, uma a subir, outra a descer, a Pamela e o JR, o JR e a baixota mamalhuda, o marido da Pamela e a Barbara Bel Geddes, e era ali, a meio da escada, que tinham lugar as conversas mais importantes, as ameaças torpes, as reconciliações serôdias, as falsas promessas. A casa era pirosíssima, com papel de parede berrante por toda a parte e enormes retratos dos antepassados saídos de um pesadelo figurativo, um mau gosto avassalador, uma espécie de inverno nuclear do mau gosto, o mau gosto que seca tudo à sua volta, que não deixa crescer nada, que envenena as fontes e faz nascer potros com duas cabeças.

Novela por novela, antes a Gabriela, Cravo e Canela, que nos entrou pelas salas dentro sem aviso nos idos de 1970 e nos trouxe um sotaque exótico e nos apanhou desprevenidos, ao menos aí a música era sublime e as personagens e o enredo não eram de plástico, tinham um ar de coisa vagamente artesanal e feita com carinho, sem masoquismo à mistura.

Em nossa casa trabalhava uma mulher-a-dias chamada Piedade do Céu, tinha um nome lindo e ajudou a criar-nos de pequenos, e quando nós dizíamos que tínhamos fome ela emendava-nos e dizia: “Menino, fome é de três dias”, e sabia bem do que estava a falar. E quando a RTP começou a exibir a Gabriela, a Piedade assistia religiosamente a todos os episódios e vivia as peripécias da protagonista com a paixão dos deserdados revendo-se num herói ou heroína que os vai resgatar um bocadinho da tristeza quotidiana, e mesmo que seja só um bocadinho já vale a pena, porque a tristeza é enorme e todas as migalhas que lhe conseguirmos subtrair aliviam o fardo. E eu só percebi até que ponto a Piedade se identificava de corpo e alma com a saga da Sónia Braga feita criada de servir quando, dois ou três anos depois do fim da novela, ela chegou um dia lá a casa e nos contou que na véspera fora ao cinema com o marido. A Piedade, que contava todos os tostões, que vivia numa pobreza sem remédio e nunca deve ter cedido à tentação de comprar um vestido para se pôr bonita, que talvez nem sentisse essa tentação, que vivia numa casa camarária, que tinha as pernas cheias de varizes e o rosto marcado das rugas desde muito nova, a Piedade por uma vez na vida abriu os cordões à bolsa quando viu em exibição um filme com a Sónia Braga chamado Eu Te Amo. Bastava ter olhado para o cartaz, pobre Piedade, era a Sónia Braga seminua, encostada à porta do apartamento, de auscultador do telefone colado ao ouvido, com uma sôfrega mão masculina a emergir da fresta entreaberta da porta e a apalpar-lhe os seios, e ela requebrada de prazer, bastava ter olhado para o cartaz, mas aquele nome, Sónia Braga, tinha para a Piedade um poder magnético.

Não deve ter tido tempo de se despedir das pernas e do rosto de rapariga, a Piedade, uma manhã acordou e viu que estavam devastadas as pernas e devastado o rosto e que nada havia a fazer, e pronto, vestiu-se e saiu para trabalhar. E nem filhos teve, ao menos, que a compensassem por aquele corpo disforme.

Entrou no cinema, sentou-se na plateia com o marido, que era bêbedo e lhe batia, e percebeu logo, às primeiras imagens, que aquilo era “uma grande porcaria”, como ela nos contou depois, mas não se veio embora, ficou até ao fim, afinal de contas tinha pagado o bilhete, foi a única vez na vida que saiu de casa para ir ao cinema e não foi nada do que ela estava à espera, já não era a história da criada de servir que encontra o amor e a felicidade, era cinema brasileiro de vanguarda que uma qualquer distribuidora lançou nas salas portuguesas para apanhar na rede os incautos como a Piedade do Céu, a sair do seu subúrbio cinzento para ir ao cinema, de lenço na cabeça. O marido da Piedade é que deve ter gostado do filme. A Piedade detestou mas ficou até ao fim, aguentou quase duas horas sem arredar pé, num exercício de masoquismo em nome do preço do bilhete e talvez em nome de um certo direito ao sonho, o direito a dizermos que não nos vamos deixar desiludir, não vamos deixar que nos estilhacem as fantasias. No ecrã, a Sónia Braga requebrava-se, seminua, em diálogos impenetráveis, mas a Piedade via ainda a Gabriela, Cravo e Canela, que veio do mato e se casou com um homem que gosta dela e que a trata bem.

O nosso carro rola pela ponte de Santiago Calatrava ao encontro da baixa de Dallas, os arranha-céus cintilam lá ao longe, que tristeza, esta, uma cidade a quem colaram como arquétipo dos seus habitantes uma tal galeria de parolos e imbecis, nos quatro cantos do mundo diz-se “Dallas” e uma das primeiras coisas que nos vêm à cabeça é uma narrativa de plástico, um tsunami de mau gosto afinal tão diferente da cidade e das pessoas que lá vivem. A outra coisa que logo nos vem à cabeça é o assassínio de um presidente americano.

A Piedade do Céu, que eu saiba, nunca viu o Dallas. Nada havia nos esgares do JR que a pudesse resgatar um bocadinho da tristeza quotidiana, que a levasse a perder a cabeça e a fazer aquelas coisas que só fazemos uma vez na nossa vida, como sair da casa cinzenta no bairro camarário, amarrar o lenço por baixo do queixo para cobrir a cabeça, dar o braço ao marido que naquele dia, para variar, não bebeu, e ir ao cinema sonhar um bocadinho.

Esta é a segunda de uma série de crónicas de Paulo Faria, autor do texto Oswald passou por aqui, publicado neste domingo na revista 2.

 



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