Pelo menos 590 das 1400 obras descobertas em Munique podem ter sido roubadas pelos nazis

Sob pressão, a Alemanha acelera a investigação e cria grupo especial para restituir arte roubada. Autoridades publicaram agora online uma primeira lista de 25 obras encontradas no apartamento de Gurlitt.

<i>Riders on the Beach</i> (1901), de Max Liebermann, é uma das obras que já foram reivindicadas
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Riders on the Beach (1901), de Max Liebermann, é uma das obras que já foram reivindicadas Michael Dalder/reuters
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As 25 obras que constam da primeira lista divulgada pelas autoridades alemãs AFP

Respondendo à avalanche de críticas internacionais, o Governo alemão anunciou segunda-feira à noite que vai criar uma task force para apurar da “forma mais rápida e transparente possível” qual a origem das 1400 obras de arte descobertas num apartamento de Munique e suspeitas de terem sido saqueadas pelos nazis.

Este lote, que inclui pintura, desenho e gravura de Henri Matisse, Marc Chagall, Paul Klee, Pablo Picasso, Otto Dix, Emil Nolde, Albrecht Dürer, Pierre-Auguste Renoir e Canalletto, entre muitos outros, e que foi localizado em Fevereiro de 2011, estava nas mãos de Cornelius Gurlitt, filho de um famoso historiador e negociante de arte que ajudou o regime nazi a vender no estrangeiro a arte confiscada aos museus europeus e extorquida aos coleccionadores judeus, Hildebrand Gurlitt.

No comunicado em que anuncia a constituição do grupo especial de investigação, que para já será composto por seis peritos na avaliação da proveniência das obras e por representantes de vários ministérios, o Governo alemão faz saber que irá publicar de imediato uma lista de 25 obras provenientes do espólio recuperado na casa de Cornelius Gurlitt, hoje com 79 anos, no site governamental que contém a base de dados da arte desaparecida desde a Segunda Guerra Mundial. Promete ainda, segundo o diário norte-americano The New York Times, divulgar novas listas, à medida que for sendo apurada a origem das peças deste fabuloso acervo que estava escondido por trás de uma parede de latas de comida, algumas fora de prazo desde a década de 1980.

Lei da "arte degenerada"
O primeiro destes inventários parciais inclui, para além das obras já apresentadas pelos investigadores na semana passada, trabalhos sobre papel de artistas relativamente desconhecidos. Entre os nomes mais sonantes estão os de Chagall (Allegory/Allegorical Scene), Eugene Delacroix (Moorish Conversation on a Terrace), Dix (Woman in the Theater Box e Dompteuse), Auguste Rodin (Study of a Woman Nude, Standing, Arms Raised, Hands Crossed Above Head), Canaletto (Sa Giustina in Prà della Vale), Théodore Rousseau (View of the Seine Valley) e Matisse (Seated Woman/Woman Sitting in Armchair).

Segundo os promotores públicos de Augsburgo, na Baviera, por agora os únicos responsáveis pelas 1400 obras que estavam em casa de Cornelius Gurlitt, cerca de 380 terão sido retiradas legalmente dos museus alemães ao abrigo da lei da “arte degenerada” – essencialmente moderna e abstracta, que não se encaixava nos padrões estéticos do Reich – de 1938. Outras 590 terão de ser examinadas cuidadosamente para apurar se terão pertencido a coleccionadores judeus que delas foram espoliadas. As autoridades acreditam que há uma forte possibilidade de que assim seja.

Falta de transparência
Nos dias que se seguiram à publicação do trabalho que tornou pública a descoberta com mais de dois anos na revista alemã Focus, foram muitos os possíveis herdeiros que se manifestaram contra o facto de as autoridades alemãs terem mantido em segredo o “museu Gurlitt” e se recusarem a divulgar a lista dos 1400 objectos recuperados (pintura, desenho, gravura e outros). A este coro de protestos juntaram-se também historiadores, representantes de associações de defesa dos direitos dos descendentes de judeus vítimas do Holocausto e até o Departamento de Estado em Washington. A acusação era uma constante – falta de transparência por parte das autoridades alemãs em todo este processo.

Talvez por isso, e mesmo antes do anúncio da task force, Guido Westerwelle, ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, tivesse já admitido estar preocupado com o efeito da relutância do executivo em divulgar o conteúdo do lote de 1400 obras com um valor estimado de mil milhões de euros. Westerwelle temia que esta resistência pudesse vir a comprometer a “confiança” que nesta matéria da restituição de arte a Alemanha tem vindo a construir nas últimas seis décadas. “Não devemos subestimar a sensibilidade deste assunto em todo o mundo”, disse ainda o chefe da diplomacia alemã à agência DPA, aqui citada pelo jornal britânico The Guardian. “A transparência é agora da mais alta importância.”

Um porta-voz da chanceler Angela Merkel veio também afirmar que o Governo de Berlim compreende perfeitamente as reivindicações das associações judaicas para que a lista completa das obras seja rapidamente tornada pública: “[Estas associações] representam pessoas já muito idosas que foram muito mal tratadas”, disse Steffen Seibert.

Chris Marinello, director da Art Recovery International, organização especializada na identificação, recuperação e restituição de obras de arte espoliadas, disse ao site de notícias Bloomberg que o começo da divulgação da lista é um bom sinal, mas que resulta de um aumento de pressão nos últimos dias: “Tudo isto devia ter sido feito logo no início.”

Longe do fim
Entre os que estão empenhados em ver esta situação resolvida o mais depressa possível está David Torent, de 88 anos, um advogado aposentado que hoje vive em Manhattan e que era ainda adolescente quando a guerra começou. Torent, que infelizmente está hoje cego, lembra-se bem de ver a pintura Riders on the Beach (1901), de Max Liebermann, na parede da casa do seu tio-avô em Breslau, hoje na Polónia. A obra de Liebermann, que faz certamente parte do lote de 1400 e cuja fotografia foi já mostrada aos jornalistas na primeira conferência em que as autoridades alemãs falaram do "caso Gurlitt", a 5 de Novembro, vem referida numa carta de Dezembro de 1939, três meses depois do arranque da guerra, que o velho advogado tem em seu poder.

Essa carta mostra, segundo o New York Times, que à data as autoridades tinham um inventário do conteúdo da casa do seu tio-avô, David Friedmann, um industrial judeu. Do inventário constam, além do Liebermann e de peças de mobiliário, porcelanas e tapeçarias, obras de Rousseau e de Camille Pissarro. Apesar de as autoridades terem recusado até aqui qualquer contacto com o seu advogado na Alemanha, Jörg Rosbach, Torent garantiu ao diário americano que tudo fará para recuperar o que pertence, por direito, à sua família.

Atitude semelhante tem a jornalista Anne Sinclair, ex-mulher do antigo homem forte do FMI Dominique Strauss-Khan e neta do célebre coleccionador francês Paul Rosenberg, cuja família reclama agora o Matisse com uma mulher sentada, mostrado na conferência de 5 de Novembro. O médico Michael Hulton, que vive nos Estados Unidos e é sobrinho-neto do coleccionador e negociante de arte Alfred Flechtheim, também prevê que se reencontrem agora pinturas da família.

Escreve o britânico The Telegraph que, há dois anos, os advogados de Hulton, de 67 anos, garantiram que Cornelius Gurlitt devolvia à família do médico de São Francisco 850 mil euros, uma parcela da verba que tinha resultado da venda em leilão de Lion Tamer, de Max Beckmann, alemão associado ao expressionismo (rótulo que o artista, aliás, desprezava). O que todos desconheciam à data é que o filho do negociante de arte com antepassados judeus que trabalhara para Hitler tinha em casa um verdadeiro museu.

Falta transparência aos alemães
Hulton está entre os que não pouparam críticas às autoridades da Baviera e de Berlim: “A linguagem burocrática alemã tem um sabor amargo para todos aqueles que, como nós, perderam familiares no Holocausto”, disse ao The Telegraph. “Os argumentos que usa são reminiscências do que aconteceu nos anos 1930 e 40. Precisamos de transparência dos alemães e que respondam depressa às nossas perguntas. Temos reivindicações muito sérias.”

Este herdeiro não arrisca fazer uma lista precisa das obras que poderão fazer parte do lote recuperado pela polícia alemã, mas garante que na colecção de Flechtheim havia mais Beckmanns – “Lion Tamer foi uma das 13 obras dadas ao meu tio-avô como pagamento”, provavelmente pelo próprio artista –, Picassos, Renoirs, Klees, Monets e Matisses.

Flechtheim era um galerista importantíssimo, muito interessado na arte que os nazis consideravam “degenerada”, e tornou-se de imediato um alvo, mal chegaram ao poder, em 1933. Nomeando o pai de Hulton como seu herdeiro, foi depois perseguido, viu-se obrigado a fugir, primeiro para França e depois para Inglaterra, onde viria a morrer praticamente na miséria em 1937. A sua mulher suicidou-se quando soube que seria deportada para um campo de concentração e outros familiares morreram durante a guerra.

Também na segunda-feira, o porta-voz da polícia de Estugarda, Horst Haug, revelou aos jornalistas que a polícia local transferira de uma casa no Sul da Alemanha para uma “localização segura” 22 obras de arte “porque parte delas estava associada à descoberta de Munique”. Os jornais alemães garantem que o dono desta casa no Sul é cunhado de Cornelius Gurlitt, que terá ligado às autoridades com receio de que a casa fosse assaltada.

O caso de Munique está certamente muito longe do fim. No que toca a anteriores proprietários de algumas das obras, será difícil reconstituir-lhes o BI e, embora as autoridades pareçam sensíveis às reivindicações dos familiares de antigos coleccionadores privados, sobretudo judeus, a lei deixa espaço a interpretações.

Lembrava segunda-feira à noite o jornal económico americano The Wall Street Journal que existem princípios gerais a nível internacional para a restituição de obras de arte confiscadas que estejam na posse de museus, mas que não há regras a orientar a devolução quando se trata de particulares. Na Alemanha, acrescentava ainda o jornal, os roubos de arte ocorridos antes e durante a Segunda Guerra já prescreveram há décadas.
 

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