As loucas 48 horas de uma televisão “ocupada” pelos trabalhadores

O Canal Nou, de Valência, vai ser encerrado pelo Governo regional. Trabalhadores geriram estação durante dois dias e audiências triplicaram.

Foto
Protestos em frente às instalações da RTVV, em Valência, contra o fecho da estação pública Jose Jordan/AFP

À beira do fim, os trabalhadores da Rádio Televisão Valenciana (RTVV) “tomaram” as rédeas das emissões do Canal Nou (Canal Nove), durante dois dias desta semana, e conseguiram triplicar as audiências, com uma programação crítica, irreverente e aberta à sociedade civil. Depois de anos de uma gestão desastrosa da administração, muito ligada ao Partido Popular (PP, de centro-direita), o fim anunciado da RTVV veio trazer ao de cima as pressões e manipulações políticas por trás do canal público da Comunidade Valenciana.

Foi desta forma, por exemplo, que, pela primeira vez, a televisão pública reconheceu que não investigou como devia o trágico acidente no metro de Valência, em Julho de 2006, que vitimou 43 pessoas. Antes de lançar em directo a porta-voz de uma associação de vítimas, a pivô afirma que “a intenção dos profissionais desta casa foi sempre a de estar ao lado dos telespectadores e contar-lhes tudo o que se passa”. “Mas nem sempre, nestes escritórios, nos deixaram fazê-lo”, acrescentou. Na época, suspeitou-se que a Generalitat (o Governo regional de Valência) terá exercido pressões sobre a estação para não dar muito relevo ao acidente, que ocorreu dias antes da visita do Papa Bento XVI à cidade.

A grelha de programação montada pelos trabalhadores quis mostrar “o que levou a que a sociedade valenciana tenha ficado sem televisão” autonómica. Com a promessa de continuar “até o ecrã ficar negro”, a RTVV deu voz a membros da oposição regional e representantes da sociedade civil que estiveram arredados da antena pública valenciana durante anos. Em dois dias, as magras audiências de 3% passaram a registar uns aceitáveis 9%.

Durante os dias de quarta e quinta-feira, a programação foi uma autêntica “mesa redonda”, em que se discutiu sobretudo a importância do canal autonómico, sempre num tom altamente reivindicativo. Chegaram mesmo a acontecer autênticas “invasões” em directo aos blocos noticiosos pelos trabalhadores. “O PP quer acabar com um dos principais patrimónios dos valencianos, importam-se uma merda com esta empresa”, podia ouvir-se de um trabalhador, empunhando um megafone e envergando um colete vermelho do sindicato.

O caminho para o descalabro
Tudo começou com a pontualidade própria dos noticiários televisivos. O painel informativo das 20h30 de terça-feira foi diferente no Canal Nou. “Hoje é um dia muito duro”, começa por dizer a pivô, rodeada por dezenas de trabalhadores da estação de televisão, para logo anunciar o fecho da RTVV, depois de 24 anos de emissões.

A dívida galopante, que já ultrapassava os 1000 milhões de euros, e uma audiência em torno dos 3% tornaram o fecho numa morte praticamente anunciada para uma estação pública que empregava 1126 trabalhadores. Mas a verdade é que nem sempre foi assim. A análise da imprensa espanhola atribui invariavelmente a culpa à gestão da administração colocada pelo PP em meados dos anos 1990, quando assumiu a Generalitat.

Fundada em 1989 com a missão de ser um instrumento cultural e linguístico da região, a RTVV apresentava, nos seus primeiros anos, uma audiência de cerca de 21% com uma equipa de 687 trabalhadores. Tudo começou a mudar em 1995, com a vitória do PP nas eleições autonómicas. O novo presidente da Generalitat, Eduardo Zaplana, defendia na altura que “a televisão é o último bastião em que ainda resistem os socialistas”. Com a nova gestão nomeada pelos conservadores, a ordem era a de colocar o máximo de “leais” ao Governo na estação, nem que para isso se registassem redundâncias em muitas funções, chegando quase a haver uma redacção paralela.

A factura tardou mas não faltou. Em dez anos, os gastos com o pessoal atingiram 72 milhões de euros. Ao mesmo tempo, as audiências evoluíam em sentido contrário, em resposta a um órgão de comunicação cada vez mais visto como uma caixa-de-ressonância do poder instituído.

Sugerir correcção
Comentar