Mulher processa Santa Casa por estar viciada em "raspadinha"

Publicidade enganosa e ausência de jogo responsável são motivos de acção que vai pedir indemnização de um milhão de euros.

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Maria Silva não consegue controlar o ímpeto: "Ganho dinheiro e vou comprar a raspadinha" Nelson Garrido

Fica horas na paragem de autocarro a olhar para quem desce a Estrada da Circunvalação. Os seus olhos vêem cada vez pior. As lentes que lhe repousam no nariz estão riscadas de tanto uso.

Pode estar um dia inteiro assim, só a olhar para os carros a acelerar em direcção à praia de Matosinhos. Com sorte, lá pára algum "amigo". Cobra dez euros por serviço sexual. "Ganho dinheiro e vou comprar a "raspadinha"."

Não consegue controlar o ímpeto. Entrega grande parte do dinheiro que ganha no café ou no quiosque, em troca de jogo instantâneo. "Como é que hei-de explicar?... A gente pensa que vai ter uma hipótese de sair desta profissão, uma vida melhor, não ser olhada como é... com desprezo."

O advogado Rodrigo Alves Moreira ficou impressionado ao perceber as rotinas desta mulher, de 39 anos, de quem já foi advogado oficioso e a quem representa sem cobrar honorários. Juntou-se ao advogado Orlando Rebelo. Esta semana, vão intentar uma acção, ao que julgam, inédita, nas Varas Cíveis do Porto: vão pedir uma indemnização de um milhão de euros à Santa Casa da Misericórdia de Lisboa por "publicidade enganosa e ausência de política de jogo responsável".

Maria Silva raspa vários tipos de lotaria instantânea. As suas favoritas são as "raspadinhas" Pé-de-Meia. A mini custa um euro e habilita a um prémio máximo de 500 euros por mês durante cinco anos. A normal custa três e promete 1500 euros durante dez anos. A super custa cinco e vai até dois mil euros mensais num período de 12 anos.

Para ela bastava ganhar a mini. Com isso já pagava um quarto, a comida, os produtos de higiene, o Jornal de Notícias, que leva para ali, para a paragem de autocarro, onde passa horas à espera de algum "amigo". "Tenho a certeza de que um dia a sorte poderá bater-me à porta como tem batido à porta de outros." Já nem sabe quanto dinheiro gastou naquilo. Só tem ganho prémios de um euro. Quando ganha um euro, gasta-o logo.

O advogado já tentou explicar-lhe as suas reais probabilidades de vencer. Ensinar a probabilidade é uma medida de prevenção. No verso da última Mini Pé-de-Meia que ela raspou e atirou para dentro da carteira pode ler que há 24 primeiros prémios em 40 milhões de bilhetes. No entender de Rodrigo Alves Moreira, isso "não devia estar só no verso, em tamanho quase ilegível"; isso devia ser bem perceptível no rosto do bilhete e nos anúncios.

As probabilidades médias de ganho constam no verso dos bilhetes de todos os jogos sociais do Estado. A negrito lê-se que há um prémio em cada três ou quatro "raspadinhas". E isso, diz, induz em erro. No jogo Super Pé-de-Meia, por exemplo, segundo a Santa Casa, a probabilidade de ganhar um primeiro prémio é de um para 1.334.666,67. No Pé-de-Meia é de um para 1.201.200,00.

"Ela só tem ganho prémios de um euro porque essa é probabilidade maior e isso não é anunciado", enfatiza. "A probabilidade de ganhar 500 ou 1500 ou 2000 euros durante anos é ínfima e é essa que é anunciada."

Parece-lhe haver "uma ausência grave de política de jogo responsável". É isso que "permite monitorizar o jogo". Nos sites de jogo, exemplifica, os clientes abrem uma conta e creditam-na. Se tiverem um comportamento compulsivo, podem ser encaminhados pelo site para aconselhamento. Em Portugal, considera, "não há interesse em ter política de jogo responsável". "Se houvesse, esta senhora estaria a ser encaminhada [para um serviço de tratamento] por quem lhe vende "raspadinhas" em quiosques ou cafés."

Já se prostituia, só que usava o dinheiro ganho para fazer a sua vida. Agora, não compra roupa nem sapatos, por vezes nem come uma refeição quente. Tem meses de rendas por pagar. Foi despejada do antigo quarto por isso. "Antes era raro gastar dinheiro em jogo, mas vi que isto podia dar uma solução à minha vida. A minha situação complicou-se... Entrei numa fase de grande ansiedade. Tenho tido problemas de saúde."

Ficou desempregada há dez anos. "Perdi o meu emprego [na fábrica] porque, depois das operações que fiz aos joelhos, comecei a ter muitas crises." Nunca mais conseguiu posto certo. Tem a quarta classe e carrega um passado de abuso. Falta-lhe retaguarda familiar, sobram-lhe nervos. Volta e meia, desmaia. Já lhe torcem o nariz os motoristas das duas linhas de autocarro que ela usa entre o novo quarto pago com a ajuda da Segurança Social e a berma da estrada que lhe serve de posto de trabalho. Ainda está semana andou às turras com a nova vizinha, a quem até já pedira dinheiro para "raspadinhas". Na semana anterior, respondeu em tribunal por agredir uma assistente social.

O advogado queria que a Santa Casa garantisse àquela mulher, pelo menos, o suficiente para pagar as contas. Na sua opinião, criou o Pé-de-Meia "para ir buscar o que já não era possível": "A Santa Casa mexeu na esperança das pessoas. Aquilo é dizer: "Não se preocupem com a taxa de desemprego, não se preocupem com estarem a trabalhar cada vez mais e a ganhar cada vez menos, porque temos aqui um salário.""

Por email, o Departamento de Jogos escusa-se a comentar o processo, que ainda não conhece. Explica ainda assim que tem uma estratégia de jogo responsável assente em "informação clara sobre todos os jogos; proibição de venda a menores de 18 anos; segurança nas transacções; estudo sobre a realidade e o impacte dos jogos na sociedade; prevenção no combate ao crime; oferta de jogos moderados em ambiente controlado".

Esclarece também que tem um "gabinete de jogo responsável, que promove acções destinadas a monitorizar os jogos sociais e preparado para intervir em matérias de eventuais dependências de jogo". Menciona ainda que há no seu site uma área exclusiva com informação sobre isso.

Notícia alterada às 16h. Publicada notícia da edição em papel na íntegra

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