Felicidade Pública (7): A cultura faço-a eu!

“Porque me vestem com roupas emprestadas?”, Macbeth, William Shakespeare (I, iii, 109-110).

A filósofa norte-americana Susan Neiman, no seu livro O Mal no Pensamento Moderno: para uma História Alternativa da Filosofia, descreve o terramoto de Lisboa de 1755 como a razão que levou ao fim do optimismo na cultura ocidental.

Justifica com o fato do mal – seja natural, como o representado pelo terramoto, ou o moral, como o corporizado em Auschwitz ou Hiroshima – ameaçar a razão humana, desafiando assim a nossa esperança de que o mundo faça sentido. O terramoto foi um evento dramático da nossa história nacional que deixou, portanto, uma pesada pegada cultural, em nós e no resto do mundo.

Ao reler esta perspectiva histórica voltei a encarar a aparente dicotomia paradoxal e ondulante na retórica da nossa cultura, que parece tão marcadamente nossa: entre o acreditar e o não acreditar no futuro, entre o optimismo e o pessimismo, entre a vitimização e o desenrascanço, num “vai-se andando” de existências que não se expõem aos extremos, e que receiam afirmar-se, assim tricotando a nossa cultura de hoje.

Como regra, o português não tem a coragem decidida de dizer que está bem ou muito bem, nem que está totalmente mal, como confirmamos no estudo que fizemos com o Instituto da Felicidade: navegamos nas águas não comprometidas dos 50%, do “mais ou menos”, da desresponsabilização, de uma assumida ausência de compromissos sobre o que sentimos ou o que esperamos ser. Tentamos passar pela vida assépticos, sem nos “sujarmos”, receosos, escondidos, sem posições deliberadas. Defesa da neutralidade? Preferência medrosa por emoções estéreis? Quem sabe se resquícios e fantasmas de um fascismo que ainda nos consome a existência coletiva.

Não me comprometo. Ponto. Prefiro o silêncio à escolha resolvida e demarcada. Elejo a neutralidade na existência. Nem sim nem não. Não arrisco. O inferno são mesmo os outros. Aliás... Estas roupas são emprestadas, nem são minhas...

Mas se a cultura é de facto feita de silêncios – o que decidimos omitir, o que ignoramos, o que desleixamos, o que descartamos – é também feita de palavras, que preenchem os nossos espaços relacionais. É igualmente da qualidade e sofisticação dos nossos discursos privados e públicos que se faz cada cultura, a qual é executada nas escolhas gramaticais, nas frases quotidianas, às vezes repetidas ad nausium. Como uma névoa corrosiva, as palavras e as frases que oferecemos ou impomos, mas não pensamos, os silêncios que não medimos ou que usamos intencionalmente para manipular, criam mundos e casulos de que somos autores, sem nos darmos por donos – porque isso era assumir um risco que os “mais-ou-menos” da vida repugnam.

Mergulhados na cultura, deixamos de ver para além dela. O horizonte fixa-se na distância milimétrica dos nossos olhares míopes. As rotinas ensurdecem-nos. Habituados ao som, não somos capazes de ouvi-las. Estamos tão dentro das nossas próprias formas culturais – as quais manufaturamos a cada minuto – que acabamos exilados delas.

Quer experimentar pensar no que já fez recentemente pela nossa cultura?

Relembre o que já disse hoje.

Que palavras usou para falar de si, da vida, do futuro, dos colegas, dos políticos, dos seus amores, dos media, do passado, do que está a ser este dia?... O que calou, o que preferiu suprimir?

Se calhar já hoje disse “Vai-se andando...”, ou começou frases por “Não...”, quando a seguir ia concordar com o que estava em discussão. Ou neste dia em que falamos já iniciou qualquer tipo de conversas, mesmo sobre o bom da existência, por expressões como “O problema é...”, mostrando que acredita, e leva outros a acreditar, que a vida é isso mesmo: uma sucessão imparável de problemas, sem dar tempo a fôlegos recuperadores, assim nos impedindo a todos uma vitalidade rejuvenescedora – até mesmo quando falamos do positivo.

Provavelmente já referiu hoje, com muito ênfase: “É tudo muito complicado!” e assim espelhou a vida com perplexidades desanimadoras, que minoraram as oportunidades; como quando disse a um filho que com esforço atingiu um sucesso: “Não fizeste mais do que a tua obrigação”.

É possível que já hoje tenha generalizado as experiências mais desagradáveis (“Nunca estás quieto”; “Este meu colega é sempre tão agressivo!”; “Não tens jeito nenhum para matemática”) e desacreditado as boas (“Uhm...Está-me a elogiar? Deve querer qualquer coisa...Esta palmadinha nas costas traz água no bico...”). É provável que já hoje tenha falado de alguém “pelas costas”, mas tenha fugido a ser frontal em algo que precisava dizer-lhe.

Que complexidades gramaticais e emotivas tem a nossa cultura!

Por um lado não nos comprometemos, pugnando pela flacidez das posições ou pelo silêncio bem calado; por outro guiamos a vida e a cultura em direção a micro-apocalipses, enviesando a existência, dissimulando responsabilidades, consolidando formas cinzentas de viver. Quantas vezes não mutilamos aspirações com a forma como nos expressamos, ou não nos desresponsabilizamos porque evitamos emocionar-nos na vida publica? Quantas vezes também não delimitamos o publico e o privado, separando a vida como se os afetos fossem algo impossível de coexistir com a ciência, a política, ou a economia? Porque serão certos sentimentos aceites e valorizados na esfera privada e julgados irrelevantes ou até chocantes na esfera publica, convidando-nos a sectarismo artificiais e ao consequente amorfismo social e cultural?

Uma explicação possível é a de que a consciência de nós mesmos em contexto, como parte de um todo, membros vivos de um coletivo, nos tenha sido estripada: convenceram-nos que aquilo que somos como pessoas em privado em nada se liga como o que somos como cidadãos; que o que se passa nos nossos discursos íntimos em nada alimenta uma cultura.

Aliás, como todos aprendemos, o bom profissional deixa em casa as emoções... até porque não se pode mostrar vulnerável...

Numa economia de mercado, dizem Oskar Negt e Alexander Kluge, a exclusão sistemática da experiência vivida é critica à sua manutenção e à vantagem do discurso político.

Defendo por isso que é perigoso para a cultura e para a democracia que continue assim.

Esta semana vivi na pele e no coração a integração harmoniosa destas artificiais dicotomias. Em discussões públicas dos trabalhos dos alunos finalistas do Executive Master em Psicologia Positiva Aplicada a decorrer no ISCSP da Universidade de Lisboa, fui testemunha de micro-transformações culturais e novas gramáticas, que uniram o público e o privado: uma juíza do Ministério Público a descrever um programa da sua autoria para potenciar o amor perante casos de violência doméstica; uma técnica de serviço social a apresentar empolgada os resultados fascinantes de um projeto que fez com mais três colegas para a promoção da consciência das virtudes e forças pessoais em jovens delinquentes sobre a alçada da justiça; uma professora portadora de nanismo acondroplásico a falar de maior bem-estar das pessoas com esta característica genética face ao comum dos cidadãos, uma historiadora a descrever o valor de longevidade de pessoas de idade avançada do interior sul do país que voltam a ter verdadeiro sentido de comunidade... 

Discursos decididamente posicionados, afetivos, diria mesmo apaixonados, pessoal e profissionalmente mesclados, que mostram propostas ontológicas e epistemológicas complementares à cultura vigente, e por isso mesmo, arquitetam cultura. 

E não são mudanças soltas nem insignificantes. No seu recente livro Emoções Politicas: Porque é que o Amor é importante para a Justiça, Martha Nussbaum faz o estudo dos discursos, da retórica e do enquadrar das Emoções Públicas para dar sentido ao que se passa na esfera coletiva e na sociedade civil. Crente de que os sentimentos mobilizam certas trajetórias – politicas, culturais, humanistas – a autora defende a relevância da promoção das emoções, e neste caso particular do Amor, como forma de reavivar as múltiplas mortes anunciadas das nossas existências conjuntas. Sem amor, diz-nos, não há políticas democráticas bem oleadas nem justiça social. Sim: unir a política e as políticas a emoções como o amor.

Receio que o amassar da cultura pelas nossas próprias mãos – tal como, queiramos ou não, fazemos todos os dias – se continuar a ser feito esterilmente, sem nos comprometermos, e sem consciência do nosso poder, se arrisque a transformar numa forma de controlo social e ideológico, poderosa, invisível e acrítica, uma espécie de autoridade moral, perigosamente e inconscientemente feita por cada um de nós a cada instante. Seremos assim autores de textos culturais anónimos: uma espécie de névoa corrosiva que serve de proteção psicológica, que parece dizer: “Detesto a nossa cultura...mas não me considero parte dela. São os outros que a fazem”.

Com uma cultura sonsa, dissimulada e não consciente, lesamos a possibilidade de novas linguagens e gramáticas de vida, e submergimos o poder da transformação. Seremos todos colonizadores, mas continuaremos a sentir-nos como população indígena, maltratados pela cultura, que acreditamos que nos é externa.

Poderemos continuar a sentir-nos vítimas, claro, mas creio antes que nos cabe ser expoentes de uma liberdade criativa no fazer culturas, aquela liberdade que detestam os decisores e burocratas das certezas. Se estes não forem tempos para sermos irreverentes, subversivos e criativos, se não for o momento para cultivar emoções escolhidas e cruzar privado e público, se não for a altura para tomarmos posições comprometidas, então quando será?

A cultura somos nós. Comecemos por isso com a dúvida – que Jorge Luis Borges diz ser outro nome para Inteligência – e reconheçamos o nosso papel na viragem para outra forma de existir em cultura. Porque a cultura consciente arranca de nós uma dimensão existencial escondida, uma voz abafada, que temos que gritar, alto, cada vez mais alto. Precisamos de mais demarcação, de mais afetos e de mais consciência para tornar a vida coletiva de novo real, visível e vivível. Devemos isso à história.

Permita-me que lhe pergunte: o que está disposto(a) a gritar em voz bem alta?

Helena Marujo é professora universitária no ISCSP/UTL. A autora escreve ao abrigo do acordo ortográfico.

Referências:
Neiman, S. (2004). Evil in Modern though: an alternative history of Philosophy. Princeton: Princeton University Press.
Instituto da Felicidade: http://cocacola.pt/institutodafelicidade/
Negt, O., & Kluge, A. (1993). Public Sphere and Experience: Toward an Analysis of the Bourgeois and Proletarian Public Sphere. Minneapolis: University of Minnesota Press.
Nussbaum M. (2013). Political Emotions: Why Love Matters for Justice. Harvard: Harvard University Press.
 

Sugerir correcção
Comentar