Marx e Freud: Bernardo Bertolucci passou por aqui

Documentário sobre o presidente do júri do 70.º Festival de Veneza mostra o espectáculo do tempo, da memória e da contradição

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Bertolucci, em "Bertolucci on Bertolucci" dr
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Bertolucci preside ao júri desta edição de aniversário do festival TIZIANA FABI/afp

Magnífica performance do corpo, da voz e do pensamento. Bernardo Bertolucci passou por aqui. É o presidente do juri desta 70.ª edição, mas o rasto que vai deixar só se tornará visível por alturas do palmarés. Por agora, o cineasta: Bertolucci on Bertolucci, documentário de Luca Guadagnino e Walter Fasano (secção Veneza Classici, fora de concurso).

Não interessa se os dois documentaristas terão conseguido fazer aquilo com que fantasiavam - isto é, uma versão cinematográfica com a profundidade e a amplitude exploratória dos livros de cinema que amam, como o de Truffaut sobre Hitchcock ou o de Bogdanovich sobre John Ford. Mas o que fizeram, ao fim de dois anos de pesquisa por arquivos televisivos de todo o mundo à procura de reportagens de rodagem ou de entrevistas do realizador de O Último Tango em Paris ou de Tragédia de um Homem Ridículo, mostra o espectáculo do tempo, da memória e da contradição. Sem voz off, sem legendas a referenciar o tempo ou o lugar (ou o filme), só Bertolucci a falar-se, a narrar-se, a interpretar-se – o que ele nunca teve dificuldade em fazer, já que é crente na psicanálise, praticante há anos. São 50 anos de cinema, italiano e do mundo, outros tantos de utopias e contradições.

É o espectáculo de um corpo, o desse jovem de Antes da Revolução (1964), filho de um poeta, Attilio, filho de Parma, que fazia corpo com Marx e com o proletariado, que para ele era o futuro. Que começou por ser poeta, aos seis anos, para imitar o pai, que foi matando simbolicamente ao longo dos filmes. Que confundiu Pier Paolo Pasolini, quando o viu pela primeira vez, com um ladrão. Porque se sentiu roubado pelo olhar de Pier Paolo, de quem seria assistente em Accatone, de quem adaptou um argumento, La Commare Seca, na sua estreia na longa-metragem – é muito bonito os cineastas, ao montarem o material, alimentarem a contiguidade dos testemunhos de Bernardo sobre o pai e sobre Pier Paolo, à beira da sobreposição, não sendo claro de que “pai” ele fala.

Nesses anos, Bernardo propunha-se, nas entrevistas, falar em francês, para ele a língua do cinema, porque é a língua dos dois cineastas que mais amou, Jean Renoir, à cabeça, e Godard - antes dos desamores. Cada um deles, segundo Bertolucci, é autor de um filme que criou uma luz e um preto e branco premonitórios do seu tempo: a luz da II Guerra Mundial em A Regra do Jogo, a luz dos anos 1960 em O Acossado. Bertolucci perseguiu a sua luz nesses anos, em que La Dolce Vita, de Fellini, lhe dissera para se pôr em movimento e ser cineasta: esse foi outro dos filmes que mais amou, por ter inventado uma realidade que não existia e que passou a existir, a Via Venetto em Roma, os paparazzi.

A Marx ir-se-ia juntar Freud e Verdi. Partner (1968) foi o agudizar de uma crise, a consciência, que em Bertolucci estava sempre à beira dos acontecimentos, de que talvez o (seu) cinema de autor estivesse a fechar-se. Começa a preparar a sua fuga em direcção ao cinema de grande público e de cineasta (talvez) burguês. O Conformista (1970) foi o filme que Godard odiou.

Ainda assim, O Último Tango em Paris valeu-lhe a acusação de ser comunista e adepto da manteiga por parte de um familiar de Giuseppe Verdi, compositor que Bernardo homenageava provocando os seus descendentes ao obrigá-los a ouvir alto e bom som a música do seu parente a partir de um gravador portátil com que se materializava à porta da mansão Verdi. Valeu-lhe também o ressentimento de Maria Schneider e de Marlon Brando, que se sentiram violados.

Novecento (1976) e La luna (1979) são os filmes de um realizador, talvez, tocado pela megalomania (Coppola, antes de ir para as Filipinas fazer Apocalypse Now, diz-lhe que o seu filme vai ter mais um minuto do que o díptico sobre a história das lutas proletárias) e encerrado nos seus fantasmas de burguês. Ainda faz um filme terminal sobre a Itália do terrorismo, La tragedia di un uomo ridicolo (1981), mas não consegue filmar mais a fealdade do seu país e foge: transforma-se em cineasta internacional, à procura das cores da China ou de Marrocos. São os anos mais problemáticos para a sua reputação crítica, pareceu negar todo o ardor juvenil e trocar a revolução pela decoração.

Regressou a Itália à procura, ainda, da beleza, coisa tremenda de se fazer. Uma hérnia discal atirou-o para uma cadeira de rodas. Diz que quando aceitou a sua condição, quando deixou de pensar no suicídio, sentiu que afinal era fácil. Livre era o seu contributo para a encomenda Veneza 70: Future Reloaded, que o festival pediu a 70 realizadores: que imaginassem o futuro do cinema. Bertolucci filmou um homem numa cadeira de rodas, ele próprio. Ainda livre e feroz. Mesmo não sendo certo que tenha alguma vez sido aquilo que ele gostaria de ter sido: cineasta underground infiltrado no cinema industrial.
 
 
 

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