Deutschland über alles (outra vez?)

A menos de um mês das eleições legislativas na Alemanha, é preciso lembrar a Alemanha de que não precisa de ter medo de Portugal nem dos restantes países Europeus. E que, portanto, não há razão para a história se repetir. Até porque, pelo contrário, a história tem tudo para ser diferente neste início de século XXI.

A Alemanha não está cercada por um “mundo de inimigos”, mas os discursos dos seus políticos e algumas das suas práticas em matéria de política europeia voltaram a obedecer a essa lógica.

As sondagens dão à CDU-CSU, da actual Chanceler Merkel, entre 39-42%, ao SPD entre 22-25%, aos Verdes entre 12-14%, ao Die Link 7-9%, aos Liberais entre 5-6% (na fronteira da eligibilidade para o Parlamento) e depois, sem aparente possibilidade de eleger deputados, o Partido Pirata com 3% e o AfD (liderado por académicos e a favor da possibilidade de saída do Euro) com valores entre 1-3%. Valores subavaliados, na opinião dos seus dirigentes, pelo facto de o AfD, ou Alternativa para a Alemanha, ser um partido diferente dos outros.

Na realidade, aqueles que mais abertamente pedem a possibilidade de saída do euro e novas moedas estão apenas representados nos parlamentos regionais ou, aparentam, nas sondagens valores reduzidos –como o AfD. Mas, tão importante como o voto são os discursos e as práticas que antecederam esta campanha ou as actuais críticas do Governador do Bundesbank ou do Ministro das Finanças às práticas dos países do sul do euro.

O título deste artigo traduzido para Português seria algo como “A Alemanha acima de tudo”, esta é uma estrofe que foi hino da Alemanha e que depois da II Guerra Mundial deixou de fazer parte do hino da República Federal Alemã e da República Democrática Alemã (que, aliás, mudou totalmente de hino).

Já a interrogação que acompanha o título deste artigo surge da leitura de um livro publicado recentemente pela Polity Press, intitulado Believe and Destroy. Trata-se de um livro centrado no percurso de vida de 80 economistas, juristas, historiadores, geógrafos, linguístas, antropólogos e sociólogos que vieram a constituir aquilo que o historiador francês Christian Ingrao denomina “os académicos da máquina de guerra”. Ou seja, aqueles académicos que deram corpo e estrutura científica às crenças que alimentaram o percurso nacional socialista que culminou na derrota alemã na II Guerra Mundial.

Believe and Destroy

é um livro de um historiador que nos mostra o papel dos académicos na legitimação científica das crenças e na sua interiorização a partir da academia para a estrutura política e burocrática do Estado Alemão na primeira metade do século XX.

Mas, curiosamente, o mais interessante para a leitura da actualidade, e da crise da Europa e do euro, reside não no objecto do livro, mas sim num capítulo centrado na origem da construção das crenças por detrás das duas guerras, o título desse capítulo é: “Um Mundo de Inimigos”. Aí, analisa-se como as décadas que antecederam as duas guerras mundiais, quando olhadas a partir de dentro da Alemanha, foram sempre vistas como um lento apertar do cerco dos inimigos àquele país. A análise de Ingrao demonstra como a sociedade alemã foi capaz de construir uma visão alicerçada na ideia de que os que estavam de fora das suas fronteiras desejavam o seu fim e, por isso, por duas vezes, foi possível passar de um discurso de cerco para uma acção destinada a pôr fim aos seus “inimigos” através de duas guerras.

Obviamente, o ontem e o hoje são muito diferentes e a história não se repete –pois, mesmo “repetindo” uma guerra mundial, os contextos foram substancialmente diferentes. No entanto, se Ulrich Beck nos diz que a prática política da Chanceler Merkel é alicerçada num pensamento e acção que o sociólogo alemão denomina de Merkiavelismo, podemos também colocar a hipótese de que as representações e práticas de uma parte substancial da elite política alemã parecem estar hoje a recuperar, sem que os próprios se apercebam, a ideia de um “Mundo de Inimigos”.

Esses inimigos são, aparentemente, hoje todos os países que não seguem um determinado curso de actuação política e económica similar ao alemão e que, por estarmos numa União Monetária e numa moeda única, podem colocar em causa o modo de vida da Alemanha.

É claro que não há guerras no horizonte – pelo menos na Europa – mas o adoptar de um discurso de “inimigos a toda a nossa volta” é perigoso para a Alemanha e para a Europa.   

No entanto, felizmente, os cidadãos alemães não pensam como muitos dos seus políticos. Uma parte substancial dos alemães não vê a Alemanha cercada por países não amigos onde predominem a irresponsabilidade e a incompetência económica e financeira. Se, por exemplo, atendermos ao Eurobarómetro realizado em Maio deste ano, na Alemanha o valor da oposição aos eurobonds tem vindo gradualmente a descer e situa-se agora em 54% (aliás é já o único país do euro em que a população se opõe maioritariamente aos Eurobonds).

A Alemanha não tem nada a temer dos outros europeus e grande parte dos seus cidadãos sabe-o, no entanto, parte das suas elites políticas continuam a insistir nessa crença de “um mundo de inimigos” e estas eleições seriam um bom momento para, de uma vez por todas, se enterrar esse discurso, porque ele perturba o futuro da Alemanha e o da Europa.

Num mundo de inimigos, de prevaricadores a toda a volta, num mundo em que a razão está apenas em sua casa, será a própria Alemanha, o seu modo de vida e a sua visão de si mesma que acabarão por ser postos em causa.

Seria importante que este artigo fosse também lido na Embaixada Alemã em Lisboa, embora o mais importante fosse mesmo que esta mensagem chegasse até aos candidatos com possibilidade de serem eleitos nas eleições para o Bundestag a 22 de Setembro de 2013.

Gustavo Cardoso

 é 

docente do ISCTE-IUL em Lisboa e Investigador do Centre d'Analyse et Intervention Sociologiques (CADIS) em Paris.

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