O legado de Snowden às democracias

Historicamente, as questões de espionagem não eram vistas pela sociedade como afectando directamente a vida das pessoas. Com o caso de Edward Snowden essa percepção alterou-se. Visto em comparação com Assange há uma grande diferença na percepção da opinião pública: os temas já não são grandes potências diplomáticas (e a guerra) mas sim a vida das pessoas no seu dia-a-dia

Nas democracias, a espionagem era vista como algo que ocorria no plano dos Estados, uns vigiando as instituições dos outros. Pelo contrário nas ditaduras – de esquerda ou de direita – é que a questão da espionagem generalizada da população era colocada.
 
Com a introdução das tecnologias da informação e da adopção generalizada que fizemos no nosso dia-a-dia, todos nós somos potencialmente alvos. A ideia de que são só os poderosos que se espiam uns aos outros cai assim por terra.
 
Recentemente o MNE britânico teria usado o argumento de que para quem não tem nada a temer não há problema em ser vigiado. Este é um argumento típico de estados totalitários que se auto arrogam o direito de não prestar contas a ninguém e exercer vigilância sobre tudo e todos. Mas a questão não é apenas o ser-se vigiado, é quem define o que deve ser vigiado e o que constitui esse algo a temer.
 
Essa é que é a questão fundamental das nossas democracias: tem de haver controlo não apenas sobre a vigilância, mas também sobre quem define o que é que deve ser vigiado ou não, ou seja, quem define o que constitui um perigo para todos.
 
Enquanto houver Estados e empresas que têm necessidade de exercer o poder e fazer negócios vai sempre haver vigilância e escuta, porque as tecnologias estão lá. O que pode (e deve) ser controlável é a associação entre a vigilância, o exercício do poder e a liberdade – e quem vigia quem está a vigiar.
 
A Internet é um instrumento tanto de liberdade como de controlo. A única coisa que nos garante que ele não é demasiadamente de controlo e muito pouco de liberdade é a capacidade que nós temos de ter instituições que controlam as outras instituições que podem exercer controlo sobre a sociedade. Se não conseguirmos fazer isso, é muito fácil em vez de criar sociedades autónomas estarmos a criar sociedades mais totalitárias.
 
Tudo seria, porventura, muito diferente sem a adopção generalizada das redes sociais, pois através do seu uso as pessoas ganharam a percepção de que o fazem fica registado sempre em algum sítio e por alguém. Daí, a dupla dimensão destes eventos Snowden/Greenwald/Miranda — se por um lado voltam a trazer ao nosso dia-a-dia a percepção de que os jogos de poder continuam assentes na espionagem, por outro lado, para os cidadãos é muito mais fácil perceber o que está em jogo: a sua liberdade de dizer o que pensam sem o Estado os vigiar. 
 
Os Estados e as grandes empresas das democracias vêem assim como muito mais difícil fazer valer lógicas securitárias, esse é o legado do alerta de Snowden: o controlo e a vigilância excessivos não ocorrem apenas nos estados totalitários, mas também nas democracias e necessitam de ser corrigidos.
 
Gustavo Cardoso é docente do ISCTE-IUL em Lisboa e Investigador do Centre d'Analyse et Intervention Sociologiques (CADIS) em Paris.
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