Os The Knife chegaram a Paredes de Coura e ainda estamos a discutir o que vimos

O dia 3 de Paredes de Coura, quinta-feira recebeu um óptimo concerto dos Veronica Falls, acolheu os Vaccines, banda para uma geração e a festa muito lúdica dos Hot Chip. Teve um destaque absoluto: a estreia em Portugal dos suecos de The Knife. Não foi um concerto, foi uma performance. Foi um manifesto magnífico, foi um logro, uma seca descomunal. A discussão segue dentro de momentos.

The Knife: performance para demolir noções estereotipadas do que deve ser um concerto
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The Knife: performance para demolir noções estereotipadas do que deve ser um concerto Paulo Pimenta
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Garantem-nos que uma das coreografias do espectáculo dos Knife pertence a um teledisco da cantora italiana dos anos 1980 Raffaella Carra e pensamos em quantas camadas de leitura terá a performance cuidadosamente planeada pelo grupo Paulo Pimenta
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The Knife: esta terá sido a actuação mais discutida de todo o festival e isso é louvável. Mas não, nem toda a ambição será perdoada Paulo Pimenta
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Os britânicos Vaccines a mostrar que são banda-sonora para uma nova geração: colocam a vida juvenil em verso de canção e utilizam o rock’n’roll como poderoso veículo de comunicação Paulo Pimenta
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Máquina lúdica imparável: os Hot Chip Paulo Pimenta
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Alexis Taylor, o homem com tudo errado para ser estrela pop, transforma-se em mestre-de-cerimónias carismático: Hotc Chips Paulo Pimenta
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Toy, óptima síntese motorika/shoegaze, um torpedo eléctrico apontado ao cérebro de quem assiste Paulo Pimenta
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Quando os Widowspeak, duo de rapaz neo-hippie e rapariga de vestido branco virginal, tocam no palco Vodafone FM as suas canções muito bonitas, muito Mazzy Star sem feridas expostas e sonhos opiáceas para curar a dor, já tínhamos passado pela muito animada rua Conselheiro Miguel Dantas de esplanadas cheias, de velhotes sentados no banco de jardim a observar os dois valentes que tentam tocar guitarra mas caem com estrondo perante todos. Já tínhamos caminhado por campos e saltado cursos de água, sob a sombra das árvores frondosas e enquanto uma vaca muge ao longe.

Caminhávamos, observávamos a habitual animação fluvial das tardes do Paredes de Coura e pensávamos que aqui subsiste aquilo que interessa na ideia original dos festivais de música: um retiro para celebração dos sons que fazem os nossos dias, sem interferência do ruído publicitário que tudo vampiriza e banaliza; um escape para um paraíso bucólico que não existe, mas fingir que sim durante três, quatro, cinco dias, vale muito a pena. Pensávamos nisto enquanto os Widowspeak tocavam para algumas dezenas uma versão de Wicked game, de Chris Isaak – depois, noite alta, chegariam os The Knife e um líder de culto para uma sessão de aeróbica e teríamos muito mais em que pensar.

O terceiro dia de festival, quinta-feira, o primeiro com tudo operacional (leia-se, todos os palcos em funcionamento), teve os Everything Everything a inaugurar o palco principal ainda com o sol brilhando no céu. A banda de Arc representa na perfeição uma longa tradição de ambição pop britânica. Ou seja, complexificam as estruturas musicais para fazer das suas canções uma confluência de estéticas diversas (dos Massive Attack aos Radiohead aos Field Music). Mas no coração (leia-se, nos refrães) desta música está sempre o desejo de comunicar, de oferecer uma melodia que se cole ao cérebro do ouvinte. Num momento a voz de Jonathan Higgs desce ao falsete para dramatizar a angústia existencial dos nossos tempos – “you could make a difference but you don’t” –, no outro aparece-nos pela frente um Kemosabe cujo refrão podia agraciar um single de dois Peters de destaque na década de 1980 (o Gabriel e o Cetera). É música que cede ao peso da sua ambição – mas que é que isso interessa perante aquilo de que todos falariam horas depois, quando os The Knife carregassem no play e dessem início ao concerto que não foi um concerto?

Nesta quinta-feira diríamos que a banda mais esperada eram os Vaccines, a julgar pelo número de pessoas vestindo orgulhosamente t-shirts da banda. Tocaram depois de os australianos Jagwar Ma provarem que não, não têm nada a ver com a Madchester de Happy Mondays e Stone Roses (o vocalista Gabriel Winterfield tinha como prova a t-shirt dos Metallica que vestia). Tragicamente, a música que fazem desmente a evidência da t-shirt. São mesmo ecos de Madchester que se libertam no balanço electrónico com guitarra dentro, nas texturas psicadélicas disparadas, na dança indolente do trio. O homem de pólo branco perante nós dançava felicíssimo como numa Haçienda a céu aberto, mas aquilo que em Howlin’ é uma óptima reavaliação de um óptimo legado soou em concerto algo constrangido, pouco genuíno. Precisamente o contrário do que vimos nos Veronica Falls, londrinos autores de um grandíssimo concerto no palco Vodafone FM. São banda autora de canções que são pérola indie à antiga atrás de pérola indie à antiga, são banda que pôs as guitarras a chocalhar como as de Lou Reed no Foggy notion dos Velvet Underground e que afinou as vozes porque pop sem harmonia não é bem pop (e se falham a afinação, como aconteceu no início de uma música, recomeçam sem constrangimentos e o público apoia porque eles estão em palco mas são uns de nós).

Ouvimos Found love in a graveyard, ouvimos Waiting for something to happen (outra forma, mais graciosa, de dizer o mesmo que o os Everything Everything) e saímos de concerto de sorriso estampado no rosto – dos Veronica Falls ainda nos recordávamos horas depois, enquanto discutíamos aquilo a que acabávamos de assistir, o concerto dos The Knife, que diferentes opiniões classificavam como performance provocatória, happening para abalar convicções ou seca monstruosa.

Paredes de Coura, dia 3, quinta-feira. Os Toy, óptima síntese motorika/shoegaze, um torpedo eléctrico apontado ao cérebro de quem assiste. A noite que chegava ficou bem a esta banda de cabelos em rebuliço, de uma massa sonora de guitarras e teclados amalgamados até se tornarem uma poderosa arma hipnótica que até a criança aos ombros do pai seguia com satisfação. Paredes de Coura, dia 3, quinta-feira, noite alta. Os britânicos Vaccines a mostrar que são banda-sonora para uma nova geração, colocando a vida juvenil em verso de canção e utilizando o rock’n’roll como poderoso veículo de comunicação. O anfiteatro natural estava já repleto, as letras estavam na ponta da língua de quem via. Há, porém, um problema nesta música: chama-se Strokes, referência maior e assombração assomando em cada Post-break up sex que lhes ouvimos. Há também esperança: porque a assombração não é duradoura e, entre a nova Melody calling e as canções de Come Of Age, o apropriado título do segundo álbum, ouviu-se nervo punk, muito brit (facção Buzzcocks, Undertones) e os Vaccines mostraram que há vida interessante a fervilhar por aqui. A tão curtíssima quanto intensa Norgaard, que até pertence ao álbum de estreia, What Did You Expect From The Vaccines, mostra o caminho. O público celebrou-os, o público dançou depois muito efusivo e muito feliz com essa máquina lúdica imparável chamada Hot Chip.

Na música dos britânicos não há segredos. Ritmo propulsor assegurado por uma baterista impressionante chamada Sarah Jones, sintetizadores borbulhando nas proximidades de house (Ibiza tão perto e tão longe), a escola DFA revista por fãs dos Pet Shop Boys e uma banda afinadíssima a dar ao povo o que o povo quer: festa, canções, dança. Over and over, Night and day, Ready for the floor. Palmas a acompanhar quando tal se impõe, festão mínimo garantido e até Alexis Taylor, o homem com tudo errado para ser estrela pop, se transforma em mestre-de-cerimónias carismático. Isto não é música para salvar o mundo, é música para animar uma noite. E é competentíssima na função. Mas também não era deles que falaríamos perto das duas da manhã. Há um elefante na sala de porcelanas e, como se sabe, é impossível ignorá-lo. Os The Knife, então.

A banda sueca dos irmãos Karin e Olof Dreijer é famosa pelo arrojo das propostas estéticas, pelo conceito que anima os raros concertos e os álbuns. Isso já todos sabiam anteriormente ao concerto mais esperado da noite de quinta-feira, o da estreia em Portugal dos autores de Shaking the Habitual. Mas, sabendo-o, ninguém esperaria o que aconteceu no palco do anfiteatro natural do praia fluvial do Taboão. Não foi verdadeiramente um concerto: começou com um “maharishi” de turbante e túnica, sozinho em palco sob banda sonora dos Goldfrapp ou dos Rapture (Gonna get myself into it, título adequado ao momento), para uns delirantes e bizarros 15 minutos de, citamos, “aeróbica de protesto”: o homem falou como pregador de livros de auto-ajuda, pediu ao público que abanasse os braços e que abraçasse a pessoa ao lado. O público, surpreendido mas divertido, acompanhou-o (cenário surreal esse de dezenas de milhar de pessoas a seguirem os gestos e sugestões do “maharishi” de licra). Esta foi a porta da entrada: o momento zero da grande farsa, da performance para demolir noções estereotipadas do que deve ser um concerto, do manifesto anti cultura de celebridade (fica tudo muito bem no papel).

O que seguiu foi aquilo que ocupou discussões e discussões nas horas posteriores à actuação (e que continuava a ser discutido na manhã do dia seguinte, a julgar pelas conversas ouvidas nas esplanadas da vila). Havia instrumentos (uma harpa arco-íris, percussões) e microfones em palco, mas (quase) tudo era ilusão. A música pré-gravada foi disparada e o happening começou. This is happening, precisamente, ouviu-se à entrada de figuras cobertas em trajos de frade de sociedade secreta (ou de povo da Guerra das Estrelas). Tudo é simulacro – ouvem-se vozes e parecem ser as pessoas em palco que as emitem, mas alternam as vocalistas, falha-se o sincronismo (propositadamente?) e percebemos que não são. Acentuam-se os ritmos de ritual pagão, cresce a batida subterrânea de um techno pós-apocalíptico, já não há membros de sociedade secreta em palco, substituídos por uma trupe de dançarinos em coreografias de teledisco sabotado dos Daft Punk. Há quem acompanhe tudo isto imerso na performance, enquanto à sua volta começam a abrir-se clareiras (há embevecidos e há desistentes, não há meio termo).

Garantem-nos que uma das coreografias pertence a um teledisco da cantora italiana dos anos 1980 Raffaella Carra e pensamos em quantas camadas de leitura terá a performance cuidadosamente planeada pelos The Knife. A intenção é louvável e o gesto, por si só, seria de aplaudir. Denunciar a noção de autoria num mundo de rituais de espectáculo padronizado (quem canta? Quem é a estrela?) e subverter a ideia do que deve ser um concerto. No mundo ideal do The Knife, Rihanna estaria a preparar um manifesto de defesa do showbiz que representa, Beyoncé estaria a pedir a Jay-Z e a Kanye West que lhe produzissem um álbum conceptual histórico, Justin Bieber embebedar-se-ia em protesto e Guy Debord, entre gargalhadas, escrevia uma carta de apoio no Além. No mundo real, o conceito não sobrevive à experiência. Porque as camadas de leitura não são discerníveis para além do simulacro, porque o espectáculo se gasta ao fim de meia hora de experiência. Porque, pormenor importante, nem coreografias, nem a música pré-gravada que as suportam, sustentam o gesto criativo desejado (por outras palavras, a surpresa dá lugar ao aborrecimento).

Esta será, muito provavelmente, a actuação mais discutida de todo o festival e isso é louvável. Mas não, nem toda a ambição será perdoada. Isto, evidentemente, é discutível. Temos mais dois dias para o fazer em Paredes de Coura. Hoje, sexta-feira, nos intervalos entre Iceage, The Horrors ou Echo & The Bunnymen. Amanhã, sábado, entre Ducktails, Phosphorescent, Calexico ou Belle & Sebastian.

 

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