Profissão, repórter

Uma mul­ti­dão começara a subir a Rua Tar­labasi, arra­s­tando fer­ros, grades, sinais de trân­sito, para erguer bar­ri­cadas. Seguiam em direcção à Praça Tak­sim, emb­ora soubessem que toda a área estava cer­cada por mil­hares de polícias.

De repente, surgiu entre os pré­dios o vulto branco de um dos blinda­dos Toma, equipa­dos com can­hões de água. Atrás, uma fila de polí­cias, de capacetes e escu­dos. Soam as as primeiras explosões, as bom­bas de gás lac­rimogé­neo rodopiam no ar, rolam pelo pavimento.

A mul­ti­dão foge pela rua abaixo, em direcção a, percebe-se subita­mente, um outro con­tin­gente da polí­cia, que está à espera. Alguns man­i­fes­tantes ten­tam esconder-se, out­ros enveredam por ruas perpendiculares.

A minha opção é uma escadaria que sobe rumo à Rua Istik­lal, a mais movi­men­tada de Istam­bul. O gás está por todo o lado, o que torna a res­pi­ração muito difí­cil. O meu ridículo equipa­mento — uma más­cara de cirur­gia e uns óculos de natação — de pouco ou nada servem. Com o esforço de subir a escadaria a cor­rer, a sen­sação é de des­maio iminente.

De repente explode uma granada de gás a uns três met­ros dos meus pés. Vejo o fumo a espalhar-se e tento fugir por uma viela estre­ita, mas é neste momento que percebo que a bomba foi lançada em minha honra. Vejo um grupo de polí­cias a cor­rer para mim. Apercebo-me ainda de que não está mais ninguém à volta.

Sinto uma pan­cada forte que me atira ao chão. Não percebo se é um encon­trão, um murro ou uma bas­ton­ada. A seguir, uma avalanche de vio­lên­cia. Grito “Press! Press!”, enquanto um instinto qual­quer me leva a encolher-me e a pro­te­ger a cabeça com as mãos.

Durante uns instantes quase perco os sen­ti­dos, mas logo depois apodera-se de mim uma aguda e estranha lucidez. Verifico que um primeiro polí­cia me arran­cou bru­tal­mente a más­cara e os óculos, cer­ta­mente para facil­i­tar a entrada do gás nos meus pul­mões. Sinto um segundo homem dar-me um pon­tapé, outro ferir-me um braço com uma bas­ton­ada, outro ainda desferir-me golpes nas per­nas e joelhos.

A cada um que veio bater-me gritei que era jor­nal­ista, em vão. Pelo menos dois dos agres­sores não estavam far­da­dos. Usavam jeans e sap­atil­has, t-shirt branca. E escu­dos e bastões, para luta corpo a corpo. Na ver­dade, dadas as circunstân­cias, duvido que alguém lhes dê luta, o que torna a sua mis­são bem mais simples.

De súbito alguém grita: “Repórter?” E estende-me a mão. Ajuda-me a lev­an­tar e leva-me até à entrada do Hotel Már­mara, onde out­ros jor­nal­is­tas se refu­gia­ram. Não sei quem é este homem, a quem os polí­cias obe­de­ce­ram, quando os man­dou afas­tar. Antoine, o fotó­grafo francês que estava comigo, espera-me. Viu tudo da janela do hote, e registou.

Uma equipa que está a fazer um doc­u­men­tário sobre a can­di­datura de Istam­bul aos Jogos Olímpi­cos de 2020 tam­bém apan­hou o momento.

Nas ima­gens pode ver-se como lutei destemi­da­mente con­tra as forças da repressão (exac­ta­mente como fazem os cidadãos tur­cos quando são apan­hados assim nas mal­has da autoridade).

Em jeito de con­clusão, direi que estes polí­cias tiveram muita sorte. Se eu não estivesse um pouco ator­doado pelo gás, tê-los-ia cor­rido todos à chapada.



Fotografias de Antoine Rambourg
 
 

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