Crónica da vadiagem

Sou director-geral da Associação Transumância e Natureza, que compra terrenos e os gere com objectivos de conservação. Sendo o burocrata da associação, sou o único que consigo trabalhar a centenas de quilómetros da Reserva da Faia Brava, o que evidentemente não me dispensa de ir a Figueira de Castelo Rodrigo duas vezes por mês.

Também estou envolvido num projecto de gestão do fogo através de pastoreio dirigido, em Vila Pouca de Aguiar, e tenho uma tese a preparar na Universidade do Porto.

Circulo bastante por aí, quase sempre em transportes públicos. Em vez de duas horas de carro, demoro seis em transportes públicos entre Figueira de Castelo Rodrigo e Vila Pouca de Aguiar. Admito que seja a única pessoa que tem necessidade de se deslocar, com regularidade, embora não com frequência, entre estas duas terras.

Ninguém, tirando uma pessoa sem dinheiro e fanático por transportes públicos e paisagem, como eu, deixará de ir de carro quando a opção é demorar duas horas em vez de seis.

Para voltar de Figueira de Castelo Rodrigo para Lisboa, começo por apanhar um autocarro por volta das oito e meia (o horário é precisamente este, por volta das oito e meia) da manhã, que é o único para a Guarda e não circula ao fim-de-semana, chegando a Lisboa a meio da tarde desse dia.

Tentei ver diferentes possibilidades e por acaso descobri que poderia poupar quase um dia de trabalho, viajando de noite: o preço da noite em Figueira de Castelo Rodrigo permite-me apanhar um táxi para Vilar Formoso, onde passa o internacional às duas e meia da manhã.

Em lado nenhum esta informação está facilmente acessível. Percebo que seja razoavelmente inútil: o preço do comboio internacional é, para o mesmo percurso, o dobro do comboio nacional, pelo que ninguém faz só percurso português nesse comboio.

Todas as despesas já existem, o custo de mais um passageiro é completamente marginal, pelo que o preço do bilhete é quase integralmente lucro, mas ainda assim custa o dobro do normal (porque o comboio é explorado pela RENFE, não pela CP).

Com base nestas viagens de comboio e numa maior sustentabilidade, acabámos por desenvolver um produto de visitação à Reserva da Faia Brava, demonstrando que o uso de um recurso pode conduzir à sua valorização de forma diferente.

Por isso lancei há tempos uma pequena petição (144 subscritores e uma carta enviada para o gabinete do primeiro-ministro que, até hoje, nunca respondeu) para que os membros do Governo assumissem o compromisso de fazer pelo menos 10% das suas deslocações oficiais, dentro de Portugal, em transportes públicos.

Seria uma pequena contribuição para a contenção orçamental, a sustentabilidade e o financiamento do deficitário sector dos transportes.

Mas o essencial é que ter os decisores a usar os transportes públicos faria muito por uma gestão focada nos interesses dos utilizadores, essa, sim, uma questão essencial de sustentabilidade.

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