A morte na família

“Eu sei que me estão a esconder algo… O que aconteceu à minha avó?”

Querida avó,

Hoje foi a missa de um mês que tu morreste. As pessoas ainda choraram. Principalmente a mãe, eu e a tua irmã. Mas acho que no funeral chorámos mais.

Sabes que eu quis ir ao teu funeral? A Clarinha não quis. Disse que lhe fazia impressão. Eu percebo. A mim também me custou muito a parte de ver o teu caixão a ir para dentro da terra e os senhores a deitarem a areia por cima. Apeteceu-me bater-lhes. Mas eles não têm culpa, não é?

A mãe tem andado muito triste. Ela às vezes tenta esconder que está a chorar mas eu percebo sempre. Mas finjo que acredito no que ela diz.

Sabes, a mãe tem-me levado a tua casa para arrumarmos as tuas coisas. Falamos sempre muito de ti. A mãe mostrou-me as fotografias dela quando era pequenina contigo e com o avô. Contou-me que te zangavas com ela quando não queria fazer os trabalhos de casa. Tu comigo não te zangavas, avó. Mas eu gostava sempre de fazer os trabalhos de casa contigo. Tu tinhas sempre mais paciência comigo do que o pai e a mãe.

Sabes, estive um bocadinho zangada contigo. Foi por isso que te escrevi esta carta. A mãe é que teve esta ideia porque eu andava muito irritada, principalmente com a Clarinha.

Desculpa, avó. Mas porque é que tinhas que morrer já? Tínhamos tantas coisas para fazer as duas. Em Setembro vou para o 5º Ano e já estou um bocadinho nervosa. Contava contigo para me acalmares como só tu conseguias. Eu sei que tenho a mãe… mas não é a mesma coisa. Sinto a tua falta e tenho muitas saudades tuas.

Lembras-te quando estávamos à espera do autocarro para irmos para a praia com a Clarinha e o primo e só quando víamos o autocarro na curva, quase a chegar, é que eu dizia que queria fazer xixi? O motorista já sabia que tinha que esperar por nós todos os dias!

Tenho sonhado contigo e com os tempos em que tu me lias as histórias. Depois fui eu que comecei a ler para ti, lembras-te? E agora estou a ler outra vez aquele livro que me ofereceste do neto e do avô que escreveram um livro juntos, o “Crime na Escola”. Estávamos sempre a tentar adivinhar quem é que tinha feito o crime. Lembras-te? Podíamos ter escrito um livro as duas…

Sempre que vou agora à tua pastelaria preferida, onde nos levavas sempre a lanchar, os senhores perguntam sempre como é que nós estamos e fazem sempre um olhar triste. Parece que têm sempre pena de nós. É porque sabem que sentimos a tua falta e porque também gostavam de ti.

Sabes, a Clarinha também tem tido pesadelos, e às vezes acorda a chorar. Também diz que tem saudades tuas, mas como ainda é pequena distrai-se mais nas brincadeiras.

Eu sei que tu também queres que eu me distraia, mas ainda penso muitas vezes em ti, durante muito tempo. E nunca quero deixar de pensar em ti. Só gostava de não ficar tão triste. Mas a mãe e o pai dizem que estar triste quando alguém morre é normal, principalmente quando é alguém de quem gostamos tanto. Mas eu acho que já não estamos todos tão tristes. A mãe de vez em quando já se ri com as parvoíces da Clarinha.

Eu sinto que tu me ouves quando eu falo contigo e isso faz-me sentir bem. Já perguntei aos pais se isso é possível, mas eles dizem que não sabem. Mas a mãe diz que também fala contigo no pensamento e que se sente mais acompanhada. Eu também sinto o mesmo. E acredito que tu vais ler o que eu estou a escrever. Como, é que eu não sei.

Mas parece que já me sinto melhor só de te estar a escrever. A mãe tinha razão. A mãe agora diz sempre que tu tinhas sempre razão. Mas às vezes acho que é para eu achar que ela tem sempre razão.

Olha avó quero que saibas que gosto muito de ti. Para sempre. Mesmo agora que já não estás cá, estás sempre dentro do meu coração.

E quando tiver dúvidas e não souber fazer as coisas vou pensar sempre no que é que tu me aconselhavas e assim vai ser mais fácil.

E quando voltar a estar irritada com a Clarinha volto a escrever-te porque sei que assim fico mais calma e com mais paciência para a aturar.

Um beijo com muito Amor,

Francisca.

Uma morte na família representa sempre um período difícil que espoleta sentimentos diferentes em cada um dos seus elementos. Sentimentos de perda, tristeza, apatia, zanga, revolta, culpabilidade, agressividade podem existir durante o período de luto de um ente querido.

Mas este período também pode representar para a família momentos de reflexão, de partilha, de solidariedade e união, contribuindo para aumentar a proximidade, o sentimento de pertença e o auto-conhecimento dos elementos que dela fazem parte.

A morte é uma das certezas que temos na vida. Lidar com o seu acontecimento é uma aprendizagem que se vai fazendo ao longo da mesma, através das experiências que vamos vivendo a este nível. É um tema difícil para os adultos, que também os leva com frequência a querer proteger a criança deste confronto inevitável, mas é desejável que o vá experienciando.

A reacção a uma morte e a forma como a criança lida com ela depende da conjugação de vários aspectos: a idade e desenvolvimento, a sua personalidade, o grau de proximidade e dependência de quem morreu, se foi um acontecimento súbito ou esperado e a forma como a família vive o processo de luto.

Os filhos esperam sobretudo a verdade por parte dos pais. Respostas dúbias ou enganadoras não permitem que confiem no que os adultos dizem. A comunicação da notícia da morte deve ser dada, sempre que possível, por um familiar próximo em quem tenha confiança. Através de uma conversa directa e simples, e procurando adequar a explicação e as circunstâncias que a envolveram, à idade e grau de compreensão da criança.

As crianças mais novas ou mais velhas podem reagir à notícia fazendo muitas perguntas de imediato ou só mais tarde mostrar alguma reacção. Mas se sentirem que lhes é permitido falar vão certamente fazer perguntas ou comentários acerca da perda.

Enquanto pais e adultos podemos e devemos partilhar alguns dos nossos sentimentos, até porque isso lhes dá legitimidade para também o fazer. No entanto é necessário ter algum controlo sobre a forma como exprimimos e revelamos as nossas emoções. Se a criança se sentir demasiado invadida pela nossa angústia e dificuldade de controlo, pode ficar assustada e evitar falar sobre aquilo que sente, como forma de nos proteger.

Adultos e crianças apresentam frequentemente sentimentos de zanga. É uma zanga relativamente à pessoa que morreu por nos ter deixado tristes, perdidos e sós a enfrentar a vida. É também uma zanga connosco próprios por não termos conseguido impedir a morte de quem amávamos.

As crianças desejam ardentemente saber o que se passa, sobretudo, se for a pessoa da mãe, de um pai ou de um irmão. Mesmo sabendo que é uma notícia devastadora, o seu conhecimento permite-lhes chorar, manifestar aquilo que sentem e pedir apoio. As consequências de não o fazer poderão ser superiores à da própria notícia. Porque a criança se apercebe do estado emocional dos adultos à sua volta, porque começa a intuir a confirmação da perda, podendo reagir em mutismo ou grande ansiedade por sentir que lhe estão a esconder a verdade.

Fazer o luto é algo necessário a todos nós para podermos voltar a caminhar em alguma direcção.

Há sinais de alerta aos quais devemos estar atentos, após a morte de um familiar de uma criança, sobretudo no que respeita ao seu tempo de duração.

A perda de interesse em actividades ou rotinas habituais, dificuldades na esfera do sono ou da alimentação, medo de estar só, regressões ao nível do comportamento, negação da morte do familiar, imitação da pessoa que morreu, falar repetidamente em ir para junto da pessoa, isolamento dos amigos, queda do aproveitamento escolar ou recusa em ir à escola são alguns dos sinais que devemos valorizar e comunicar ao médico pediatra a sua evolução.

Nestes casos pode ser necessário recorrer a um profissional da área da saúde mental (psicólogo ou pedopsiquiatra) que ajude a criança a aceitar a morte e auxiliar os pais a encontrar formas de a ajudar a fazer o processo de luto.

Ter presente enquanto pais e adultos que temos a função de ser apoio para a criança durante os processos de luto.

Que as questões da morte podem ir sendo abordadas no dia-a-dia através da morte de animais, por exemplo.

Ajudar a criança é proporcionar momentos em que expressamos sentimentos, em que podemos falar, chorar, e até ir por flores ao cemitério. Mas juntos.

Sofia Nunes Silva é psicóloga clínica e terapeuta familiar.

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