A maior atrocidade da guerra na Síria, que é cada vez mais sectária

Um comandante arranca o coração e o fígado de um inimigo e leva um dos órgãos à boca – um crime de guerra e uma prova do descontrolo das milícias.

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A cidade de Homs Yazan Homsy/Reuters

O vídeo chegou à Internet no dia 12 e tem uma imagem límpida. O sírio Abu Sakkar abre, com uma faca, o torso de um morto e tira-lhe o fígado e o coração.

“Deus te abençoe, Abu Sakkar — ouve-se dizer —, parece mesmo que lhe desenhaste um coração no peito”. “Juro por Deus, soldados de Bashar, cães, que vou comer os vossos corações e as vossas vidas”, diz Sakkar que leva o coração ou o fígado à boca.

Nesta altura do filme, se o comeu ou não já é indiferente. Esta é, até agora, a maior atrocidade registada na guerra civil na Síria.

“Recebemos uma cópia do original deste vídeo de uma das nossas fontes na Síria na semana passada. A versão que temos não está editada como a que foi posta no Youtube”, disse à BBC um dos directores do grupo internacional Human Rights Watch (HRW), Peter Bouckaert. “Passámos uma semana a analisá-lo e identificámos a pessoa que mutila o soldado, cortando o seu coração e o seu fígado, e que faz declarações extremas sobre a comunidade alauíta, antes de pôr o fígado na boca, como sendo o comandante conhecido como Abu Sakkar”.

Para a HRW, foi um crime de guerra. O mais atroz, mas não o único. A organização tem relatos de outros — mutilações, mutilação de cadáveres, execuções sumárias, torturas... de ambos os lados do conflito.

“A mutilação de corpos de inimigos é um crime de guerra. Mas mais problemático do que isso é o rápido crescimento da retórica sectária e da violência [entre os grupos armados]”, disse Bouckaert.

A milícia de Sakkar
Esta guerra já com dois anos matou 70 mil pessoas (dado das Nações Unidas) e trava-se entre o Governo do Presidente Bashar al-Assad e a oposição armada. Esta organizou-se em torno de uma cúpula, o Exército Livre da Síria. Porém, surgiram milícias que agem por conta própria.

Sakkar pertencia à Brigada Omar al-Farouq, que combate debaixo da insígnia do Exército Livre. No final de 2012, criou a Brigada Independente Omar al-Farouq — há vários vídeos do comandante a manejar as armas pesadas da sua milícia.

O conflito sírio começou por ser uma luta pela democracia. A proliferação das milícias independentes — estima-se que tenham 200 mil homens — fez a guerra tornar-se sectária em muitas regiões de um país de vários ramos religiosos. A maioria da população é sunita, mas o poder político e económico é controlado por um ramo xiita, os alauítas.

Abu Sakkar radicalizou-se depois de combater em Homs durante o brutal cerco governamental a Baba Amr, entre Fevereiro e Maio de 2012. Combate agora em Qusayr (na fronteira com o Líbano), que está a ser castigada por uma grande ofensiva governamental; suspeita-se que a milícia xiita Hezbollah esteja a apoiar ali os homens de Assad. Qusayr é um ponto essencial na passagem de armas para o Governo de Damasco.

O fraccionamento e a indisciplina das milícias interessa pouco ao frágil Conselho Nacional Sírio que junta a oposição política a Assad e tenta manter a credibilidade internacional. O Conselho foi convidado para a cimeira sobre a Síria que Rússia, EUA e Reino Unido querem fazer em Genebra. Ainda não confirmaram a presença; Assad também não.

Segunda-feira, perante a urgência de fazer controlo de danos, o Conselho, em comunicado, considerou o vídeo “um acto contraditório com a moral e a cidadania síria” e frisou que luta “por todos os sírios que desejam a liberdade”. O Exército Livre fez saber que Sakkar deve ser julgado.
 
 

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