O regresso do engenheiro de superfícies

José Sócrates falhou o seu regresso à política, após o tão celebrado "silêncio de dois anos".

Por duas razões muito simples. Não tinha nada de novo para dizer. E mostrou que não mudou nada.

O país está à beira de mais uma enorme tempestade política, por causa do Tribunal Constitucional e da sétima avaliação da troika.

Não precisa para nada de um velho líder que voltou para resgatar as suas culpas. Em particular as suas culpas no resgate em que estamos metidos.

Já são poucos os que têm ilusões na gestão da crise dos sucessores de José Sócrates.

Porque estamos na Quaresma, o primeiro-ministro que emigrou para Paris podia ter feito o seu acto de contrição. O número do cordeiro pascal. Nada disso.

Continua o mesmo de sempre. Agressivo, arrogante, zangado. Sempre a corrigir os entrevistadores e a querer impor uma linha para o debate: a sua.

José Sócrates tem razão quando diz que tem o direito a fazer a sua narrativa dos anos em que foi primeiro-ministro e da crise que o fez cair. Ou quando diz que estão errados os que dizem que a culpa dessa crise é apenas do que o seu Governo fez ou deixou de fazer.

Mas isto nós já sabíamos há dois anos.

Ao contrário de várias previsões, Sócrates poupou Seguro e até o desculpou por não defender o seu legado.

Concentrou-se em Cavaco e na história do PEC IV. Mas o PEC IV - em que o PSD, como é sabido, não se portou nada bem - foi o fim de um filme.

Para trás ficaram meses e meses de cegueira e obstinação perante a crise que se agravava. E isso José Sócrates ignorou.

O PEC IV era o melhor tiro que Sócrates tinha neste regresso. Já o usou.

Como um Narciso ferido, Sócrates, o animal feroz, veio então mostrar-nos a sua narrativa.

Mas o engenheiro do inglês técnico continua a ser acima de tudo um grande engenheiro de superfícies.

Um homem que procura moldar a realidade até que ela se transforme numa superfície que reflicta exactamente o que ele quer ver nela.

Veio para reivindicar o seu direito a falar e diz não visar qualquer cargo político - este sim, foi o momento cordeiro pascal da entrevista na RTP1.

E se tem todo o direito a falar, em nome da pluralidade, começou já a zurzir em toda a imprensa de que não gosta. Tal como fez no passado.

Nem todas as narrativas cabem no espelho do engenheiro de superfície.

Foi o prefácio, segue-se a obra.

E voltamos à cena do ódio.

O regresso de Sócrates despertou ódios e paixões exacerbadas.

A tudo isto Sócrates acrescenta um outro ódio: o seu próprio ódio por quem não partilha a sua narrativa.

Não tem mais nada a dizer aos portugueses.

Mas o engenheiro de superfícies ficou prisioneiro da sua própria narrativa. E não percebeu como Portugal mudou.

E o país pode estar sem futuro mas não é por isso que precisa de regressos ao passado.

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