Os deuses devem estar loucos...

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1. O comissário europeu responsável pelo Mercado Interno, o francês Michel Barnier, resumiu numa frase o acordo sobre as condições do resgate de Chipre: "É melhor do que a bancarrota". Colocadas as coisas assim, ninguém poderá discordar. Barnier disse, no entanto, mais duas coisas importantes. Lembrou que, caso a supervisão bancária europeia já estivesse de pé (a Alemanha adiou-a para 2014), o país teria tido muito menos problemas. Reconheceu que o modelo da economia cipriota "chegou ao fim". Podia ter dito que o acordo foi alcançado com uma pistola apontada à cabeça do Presidente cipriota, a partir do momento em que o BCE anunciou que cortaria o financiamento dos bancos de Chipre.

Em termos gerais, foi esta a lógica que prevaleceu na negociação dos resgates anteriores: ou as condições dos credores ou a bancarrota. Em Chipre, no entanto, os credores colocaram uma nova exigência que abre um precedente de consequências ainda imprevisíveis: impuseram a participação directa dos depositantes e dos investidores no financiamento do resgate, através da penalização dos depósitos e da reestruturação da banca. Ontem, congratulavam-se com esta decisão, que poupava os pequenos e penalizava os grandes. É certo que a Europa salvou a face ao excluir os depositantes com menos de 100 mil euros na conta. Encontrar nesta decisão alguma dose de moralidade é que pode ser um pouco precipitado. A reestruturação da banca terá um efeito devastador na economia cipriota, que será paga por todos e, ainda mais, pelos mais pobres. Parafraseando Nils Pratley, no Guardian, o que aconteceu efectivamente foi que a Alemanha "está a dizer a um país para descobrir outra ocupação". É difícil de ver algo de bom sair daqui. "Chipre vai ser a partir de agora uma economia sem crédito, que irá contrair-se rápida e dolorosamente porque a sua principal indústria acaba de ser fechada", resume Robert Peston, na BBC. Alguns analistas admitem uma contracção do PIB de 20 ou 30 por cento.

2. "Este era o acordo que nós queríamos", disse o ministro das Finanças alemão, Wolfgang Schäuble. Numa entrevista à Reuters e ao Financial Times, o novo presidente do Eurogrupo explica candidamente porquê. "Se queremos ter um sector financeiro saudável e sólido, a única maneira é dizer [aos bancos]: "Ouçam, foram vocês que quiseram arriscar e, portanto, têm de lidar com isso"". Dito assim, até parece razoável. O problema é que não foi agora que Berlim descobriu que Chipre era uma espécie de paraíso fiscal com um sistema bancário hiperdimensionado. Mas foi agora que viu a oportunidade de aplicar um outro modelo de resgate, graças à acalmia nos mercados garantida pelo BCE, que permitiria controlar os danos. Durante alguns dias, toda a gente se congratulou com a sábia decisão de Washington de deixar falir o Lehman Brothers.

As regras do jogo mudaram. A estratégia de Berlim continua a ser exactamente a mesma: a purificação pelo castigo. Vale a pena citar o editor do prestigiado Die Zeit, Josef Joffe, num artigo recentíssimo que publicou no Financial Times sobre o dilema alemão para lidar com Chipre. Explica ele que, se Chipre fosse salvo sem uma forte penalização, "os Governos de Espanha, Portugal e Grécia, mas também de Itália ou da França, relaxariam os cortes orçamentais, que são dolorosos e impopulares, bem como as reformas". Apesar do que se está a passar nas economias do Sul, a Alemanha ainda não decidiu quando e como o castigo aos infractores poderá ser aliviado com uma visão de longo prazo da UEM, que implicará disciplina mas também partilha dos riscos. O acordo de Chipre é também um teste a esta estratégia, ao confrontar os cipriotas com condições brutais para se manterem no euro. Haverá, provavelmente, um dia em que Chipre ou outro país qualquer decida que o preço a pagar não vale a pena.

3. Chipre pode ter evitado a bancarrota e Berlim pode ter obtido exactamente o acordo que queria. O problema é que esta crise está a destruir a reputação europeia e as suas instituições. Ontem, tudo o que Durão Barroso teve para dizer foi que acreditava no sucesso do programa de Chipre: "Devidamente aplicado, vai restaurar a viabilidade da economia cipriota". Não se sabe é quando. A França está demasiado fraca para fazer de contrapeso. Ontem, o novo secretário de Estado dos Assuntos Europeus francês, Thierry Repentin, só teve para dizer que "a relação franco-alemã é única, serena, equilibrada, inclusiva, não-partidária e evidentemente indispensável". Os países do Sul estão limitados pelas consequências da sua crise económica, social e, em certos casos, política. O mais grave, porventura, nesta crise é a sensação de "desgoverno" que ela transmite. Aos cidadãos, aos mercados e ao mundo. Liderar de Berlim, sem contraponto, poderá ter as suas vantagens no curto prazo. Acabará por não resultar.
 

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