Argentina vê o Papa como um homem do povo com algumas sombras no passado

Moderado mas frontal, o Papa Francisco é também referido como "voz da compaixão" numa Argentina orgulhosa do seu novo Papa, mas que não esquece a ligação da Igreja à ditadura do general Videla.

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Os jornais argentinos desta quinta-feira AFP

Na mesma Catedral de Buenos Aires, onde centenas de fiéis festejaram a escolha do primeiro Papa da Argentina e de toda a América Latina, ainda ecoam as palavras do arcebispo eleito sumo pontífice, filho de imigrantes italianos. O cardeal Jorge Bergoglio, agora eleito representante máximo da Igreja Católica, valorizava nas suas homilias o sentido de pátria e a importância das instituições, a atenção a dar aos mais vulneráveis e a defesa dos mais tradicionais valores da Igreja. Entre os que lembram o seu percurso na Argentina, nas páginas de jornais e blogues argentinos ou latino-americanos, há também quem recorde que a sua ascensão na Igreja coincidiu com o período mais obscuro da ditadura militar entre 1976 e 1983.

“Um príncipe pobre no luxo do Vaticano”, escolhe para título o jornal brasileiro O Globo. Uma pessoa, como se lhe refere o jornal argentino La Nación, que tanto pode cuidar dos doentes de sida nos hospitais como cativar as pessoas num grande auditório, que tanto pode falar de alta teologia com Bento XVI como se mistura com o povo na rua.

Era o que escolhia fazer. Recusava ser conduzido num carro com motorista, enquanto a maioria da população andava a pé ou de transportes. Preferia o metro ou o autocarro, passando ou não despercebido mas usando, sempre que possível, vestes discretas. Vivia até aqui num apartamento simples num edifício da Cúria, junto à catedral. Afastava luxos e protagonismos e distanciava-se do centro do poder, evitando, sempre que podia, deslocar-se ao Vaticano. Apreciador de autores como Dostoievski e Borges, também gosta de tango e de futebol, escreve o La Nación, que se refere às “afinidades escondidas mas significativas” do cardeal Bergoglio nesse campo: o novo Papa é adepto do San Lorenzo de Almagro e conserva com muita estima uma camisola autografada por todos os jogadores.

Não destruir o “plano de Deus”
A imprensa argentina enche-se, nesta quinta-feira, desses ecos, lembranças e relatos de episódios que traçam um perfil com contornos bem definidos – de homem humilde e solidário, próximo do povo e firme nos seus propósitos, sem medo de enfrentar o poder político quando se tratava de combater a exclusão ou, como dizia, de “não destruir o plano de Deus” em temas como o direito ao aborto ou ao casamento homossexual – mas também algumas sombras.

Embora moderado e dialogante, não desistiu de travar, como dizia, a “guerra de Deus” contra o casamento homossexual, mobilizando sacerdotes e organizando vigílias em defesa da “unidade familiar”. “Não sejamos ingénuos: não se trata de uma simples luta política”, dizia, falando antes de “uma intenção de destruir o plano de Deus”.

Saiu vencido. Em 2010, a Argentina tornou-se o primeiro país da América Latina a legalizar o casamento e adopção de crianças por casais homossexuais. O cardeal Bergoglio também tentou, sem sucesso, impedir que o aborto fosse permitido em casos de violação e perigo de vida para a mãe ou o bebé. Foram duas lutas na mesma frente que o opôs ao casal Kirchner: Néstor, que morreu em 2010, foi Presidente entre 2003 e 2007, e chegou a acusá-lo de ser “o verdadeiro representante da oposição” e depois Cristina, sua mulher e sucessora na Presidência, actualmente a cumprir o segundo mandato.

A ditadura e a Igreja
Foi o casal Kirchner que impulsionou os julgamentos relativos a crimes cometidos durante a ditadura, não sem “manchar a Igreja Católica”, escreve jornal argentino La Vanguardia. E é nessa ligação que alguns acusam o jesuíta Jorge Bergoglio - arcebispo de Buenos Aires entre 1998 e 2012 e presidente da Conferência Episcopal na Argentina entre 2001 e 2011, proclamado cardeal pelo Papa João Paulo II em 2001 - de cumplicidade com o regime do ditador Jorge Videla.

Dizem que o sacerdote tinha conhecimento do Plano Sistemático de roubo de bebés e que, por outro lado, nada fez para salvar os dois sacerdotes, perseguidos pelo regime e sequestrados, a quem retirou a licença eclesiástica. O Plano Sistemático – no qual os bebés que nasciam nos centros de detenção e tortura eram roubados às mães, dadas como desaparecidas, e entregues a militares ou seus familiares – valeu ao ditador Jorge Videla uma condenação a 50 anos de prisão.  

Na memória de muitos argentinos estão também as iniciais ESMA referentes à Escola Superior de Mecânica da Armada que foi, nos anos da ditadura, o maior e mais emblemático centro clandestino de detenção e tortura de opositores. É também o nome por que é conhecido o caso judicial para condenar os responsáveis por violações e crimes contra a humanidade durante a ditadura e aquele que agora foi ressuscitado para lembrar que, em 1976, o cardeal Jorge Bergoglio retirou a licença eclesiástica a dois sacerdotes Orlando Yorio e Francisco Jalics, mais tarde sequestrados e identificados por celebrarem missa em povoações pobres.

O jornal Tiempo Argentino recorda detalhadamente o episódio numa notícia de 2010, na qual dizia que Bergoglio se mostrou reticente em colaborar com a Justiça: reconheceu que tinha conhecimento da gravidade das práticas exercidas pelo terrorismo do Estado", mas nunca se apresentou à Justiça para testemunhar contra os responsáveis no banco dos réus, diz o jornal. Ele nega e diz que tentou interceder para salvar pessoas.O sociólogo Fortunato Mallimacci, ex-decano da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires diz, por seu lado, citado no site de notícias Comunidadk.com: "A história condena-o: revela-o como alguém que se opôs a todas as experiências inovadoras da Igreja e, sobretudo, na época da ditadura, mostra-o como muito próximo das forças armadas durante os anos de chumbo."

Versão bem diferente tem Adolfo Pérez Esquivel, prémio Nobel da Paz de 1980. "Houve bispos que foram cúmplices da ditadura, mas Bergoglio não", disse, citado pelo jornal espanhol El Mundo. "Criticam-no porque se diz que não fez o necessário para tirar da prisão dois sacerdotes, sendo ele o superior da Companhia de Jesus. Mas sei pessoalmente que muitos bispos pediam à junta militar a libertação de prisioneiros e sacerdotes e os seus pedidos não eram aceites", acrescentou.

Preocupado com a violência policial
No mesmo Tiempo Argentino lê-se que também há quem defenda o novo Papa como alguém que ajudou muitas pessoas a escapar à repressão militar. E mais recentemente, em 2001, preocupado com a violência policial contra os protestos a pedir a demissão do então Presidente Fernando de La Rúa, terá pessoalmente telefonado ao ministro do Interior a pedir um maior cuidado da polícia de choque com as pessoas nas manifestações.

A relação distante que manteve com o casal Kirchner não impediu o cardeal Jorge Bergoglio de rezar uma missa na catedral publicamente, pedindo a todos para porem de lado “todo o tipo de posição antagónica” e referindo-se ao defunto Presidente como "ungido pelo povo" e merecedor da oração de todos.

Essa relação por vezes conturbada também não impediu Cristina Kirchner de o felicitar, por comunicado, assim que a notícia da eleição correu mundo. Com estas palavras: “Desejamos-lhe, como líder e guia da Igreja, uma tarefa frutuosa no exercício de tão grandes responsabilidades em busca da justiça, da igualdade, da fraternidade e da paz entre a humanidade.” E de anunciar que estará presente na missa de inauguração do pontificado na próxima terça-feira.

Também os argentinos Maradona e Messi, deuses do futebol, como se lhes refere a imprensa argentina, saudaram o novo Papa através de mensagens no Twitter. E houve quem desse voz ao orgulho sentido pela Argentina por ter um Papa com estas palavras: “Maradona, Messi e agora Bergoglio!”

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