Passado nazi da Filarmónica de Viena revelado ao pormenor

Esta terça-feira passam 75 anos da anexação da Áustria pela Alemanha, às portas da Segunda Guerra Mundial. A orquestra de Viena abriu os seus arquivos a três historiadores, que agora mostram que metade dos músicos – um deles viria a ser director da filarmónica no pós-guerra – era nazi.

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Adolf Hitler na Ópera de Viena, em Março de 1938 AFP

As datas redondas de acontecimentos históricos prestam-se a estudos e sondagens e os 75 anos da anexação da Áustria pela Alemanha não são excepção. O aniversário, que se cumpre esta terça-feira, levou o jornal de Viena Der Standard a fazer uma consulta à população tendo por referência este período de domínio nazi e aumentou a pressão para que a orquestra filarmónica da cidade abrisse os seus arquivos aos historiadores, sem restrições ou reservas.

Se a sondagem de opinião do Der Standard trouxe novidades inquietantes, o estudo da filarmónica veio apenas confirmar, e detalhar, o que já antes se enunciara em livros e documentários – a orquestra, uma das mais prestigiadas formações clássicas do mundo, foi um instrumento de propaganda nazi e teve muitos fiéis a Hitler entre os seus músicos.

Em traços largos, e segundo o diário britânico The Independent, a consulta pública conduzida pelo jornal vienense mostra que mais de metade da população (54%) acredita que representantes nazis seriam eleitos se fosse dada ao partido a possibilidade de se candidatar a eleições. Mas os números revelam ainda outros dados preocupantes: 42% dizem que “nem tudo era mau” quando os nazis governavam a Áustria, 39% acreditam que é provável que o anti-semitismo regresse ao país e 61% admitem que gostariam de ver “um homem forte” à frente do Governo.

A investigação feita na filarmónica, cujos resultados serão publicados esta terça-feira, não aponta só traços gerais, vai ao pormenor de mencionar nomes e identificar datas em que determinado facto ocorreu. É a primeira vez, garantem os três historiadores que dele se encarregaram, que se faz um estudo tão detalhado sobre o papel da orquestra como ferramenta de propagação dos ideais do III Reich e palco de perseguição aos judeus na Áustria.

O passado nazi da Filarmónica de Viena não é uma novidade. Aliás, até aqui a orquestra foi várias vezes acusada de tentar branqueá-lo, recusando-se a permitir o acesso a toda a documentação que consta dos seus arquivos. Mas, com a proximidade do aniversário da anexação, a pressão para que as filiações dos seus músicos fossem esclarecidas aumentaram e fizeram com que os seus responsáveis abrissem as portas a uma equipa independente de investigadores, liderada pelo historiador Oliver Rathkolb, explica a BBC.

Segundo a agência de notícias France Presse (AFP), é com base no trabalho destes especialistas que a orquestra está agora em condições de revelar que pelo menos 13 dos seus músicos foram afastados por serem judeus, por terem casado com judeus ou por se oporem frontalmente à anexação. Destes, seis terão sido assassinados e os restantes deportados para campos de concentração. A maioria dos que conseguiram partir para o exílio radicou-se nos Estados Unidos e no Reino Unido e nunca mais voltou.

Alguns dos detalhes deste estudo que se centra sobretudo no período 1938-1945, antecipados à imprensa no domingo e disponíveis em alemão no site da orquestra, mostram ainda que, durante a guerra, metade dos músicos pertencia ao partido nazi NSDAP (60 em 123), uma percentagem altamente elevada, sobretudo quando comparada com a da população austríaca em geral (10%) ou até mesmo com a da filarmónica de Berlim (20%).

Este relatório sobre a vida da orquestra durante a anexação, considerada um dos episódios mais negros da história da Áustria, vem também defender que o famoso concerto de ano novo desta formação, que actuamente é transmitido para 80 países e tem uma audiência estimada de 50 milhões de pessoas, começou por ser uma ferramenta de propaganda nazi. Através dele, Joseph Goebbels, o ministro da Propaganda de Hitler, queria promover Viena como capital de “cultura, música, optimismo e jovialidade”.

O trompetista nazi

A 12 de Março de 1938, as tropas de Hitler invadiram e ocuparam a Áustria sem qualquer resistência. Pelo contrário: dezenas de milhares de pessoas tomaram as ruas para dar as boas-vindas aos soldados de Hitler (o país combateu na Segunda Guerra Mundial como parte da Alemanha) e muitos foram os austríacos que ajudaram a gerir campos de extermínio. Mas a Áustria do pós-guerra disse-se muitas vezes vítima do Reich e não sua aliada, o que explica a dificuldade de instituições de peso como a Filarmónica de Viena em assumirem o papel que desempenharam na ocupação.

O estudo, que foi uma encomenda da própria filarmónica vienense, tinha um programa bem preciso, explica a AFP: aprofundar o tema da “politização da orquestra” sob administração do nacional-socialismo; completar “as biografias dos músicos, excluídos, perseguidos e, eventualmente, assassinados por razões racistas e políticas” e mergulhar nos “arquivos sobre a nazificação e desnazificação” desta formação que Wagner dizia ser uma das melhores do mundo.

Os pormenores da investigação que a imprensa internacional já avançou parecem não deixar dúvidas do envolvimento de muitas das figuras da orquestra nas estruturas do partido nazi, mesmo no pós-guerra. Entre os dados mais relevantes está o que mostra que, de 1954 a 1968, a filarmónica foi dirigida por um antigo membro das Waffen-SS, a força de elite de Hitler encabeçada pelo temível Heinrich Himmler, e colaborador da Gestapo, a polícia política do regime. Chamava-se Helmut Wobisch e era trompetista.

“Em 1942, metade dos membros da orquestra tinha ligações ao partido”, disse à BBC o historiador Fritz Truempi. “E mesmo depois de 1945 a maioria não teve de sair.” Wobisch estava entre os músicos forçados a sair (umas fontes dizem que foram quatro, outras dez), mas acabou por regressar seis anos depois. Foi ele quem, no final dos anos 1960, decidiu condecorar um criminoso de guerra, dando o Anel de Honra a Baldur von Schirach, um antigo governador nazi que, segundo o jornal britânico The Times, supervisionou a deportação de 65 mil judeus de Viena.

Wobisch argumentou que a distinção atribuída a Von Schirach vinha apenas substituir a que lhe fora concedida em 1942 e que o antigo governador perdera. No fim da década de 1960 Von Schirach acabava de ser libertado da prisão de Spandau, a que estivera confinado por crimes contra a humanidade. Lembra o Times que o trabalho do trompetista nazi que morreu em 1980 chegou a ser elogiado pelo pianista e maestro Leonard Bernstein, um americano filho de judeus ucranianos.

A Orquestra Filarmónica de Viena promete mais novidades para esta terça-feira. 

 

 
 
 

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