Ordem diz que registo de conflito de interesses dos médicos é inconstitucional

No site do Infarmed há médicos a declarar que receberam bens e patrocínios da indústria farmacêutica com valores entre os 10 cêntimos e os 2650 euros.

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Rui Soares

Alguns médicos, poucos, já começaram a declarar patrocínios e bens que recebem da indústria farmacêutica, mas a Ordem que os representa vai pedir ao provedor de Justiça que suscite a inconstitucionalidade da alteração ao Estatuto do Medicamento que, desde Fevereiro, obriga os profissionais de saúde a divulgar os apoios dos laboratórios.

A sétima alteração ao Estatuto do Medicamento estipula que os profissionais de saúde, as sociedades científicas e as associações de doentes passam a ter de declarar publicamente todos os apoios, directos ou indirectos, que receberam da indústria farmacêutica na página electrónica do Infarmed. O prazo para a declaração é de 30 dias e as multas podem chegar aos 45 mil euros, no caso de pessoas colectivas.

A Ordem dos Médicos (OM) prepara-se para contrariar as novas orientações, não só pedindo ao provedor de Justiça que peça ao Tribunal Constitucional para se pronunciar, mas também solicitando esclarecimentos sobre a “potencial ilegalidade no tratamento de dados” junto da Comissão Nacional de Protecção de Dados. Pelo menos é neste sentido que aponta um dos dois pareceres do departamento jurídico da OM divulgado no site da instituição. A Ordem “já deu a devida sequência às conclusões do parecer” que recomenda que a questão da inconstitucionalidade seja levantada junto do provedor de Justiça, refere a nota.

O consultor jurídico Vasco Coelho, que assina um dos pareceres, defende que o dever de registar todos os apoios recebidos da indústria farmacêutica pode colidir com, “pelo menos, dois princípios constitucionais”. Poderá estar aqui em causa, sustenta, a violação do princípio da igualdade (porque o mesmo tipo de mesma exigência não é feito a outros cidadãos, como os deputados, por exemplo) e a violação do direito ao bom-nome e reputação (porque a publicitação do registo “faz cair sobre o médico a suspeita de que exerce a sua profissão condicionado pelos apoios que lhe são concedidos”).

O jurista nota também que não está assegurada aos profissional de saúde o direito de correcção dos dados colocados no registo pelas empresas e sugere que estas questões sejam levadas ao Conselho Nacional das Ordens Profissionais para uma eventual tomada de posição institucional.

Entretanto, na página electrónica da Autoridade Nacional do Medicamento (Infarmed), que ficou incumbida de criar uma plataforma para a divulgação destes dados, já há médicos a declarar que receberam bens e patrocínios. Os valores declarados são muito díspares: há quem admita que recebeu um bem no valor de 10 cêntimos e quem divulgue patrocínios da ordem dos 2650 euros (a quantia mais alta registada até esta terça-feira).

Por enquanto, são poucos os profissionais de saúde a cumprir a obrigação legal e não há ainda laboratórios farmacêuticos nem associações de doentes a declarar apoios concedidos. Por que razão haverá médicos que declaram apoios de valores irrisórios (10 cêntimos, 50 cêntimos, um euro)? Talvez porque a legislação não estipula um valor mínimo, especula uma fonte do Infarmed, que lembra que esta é ainda a fase inicial do processo. O que o Departamento Jurídico da OM aconselha, por cautela, é que todos os apoios acima de 102 euros sejam declarados.

Antes das alterações, o Estatuto do Medicamento obrigava apenas os profissionais que colaboram com o Infarmed a declarar eventuais conflitos de interesses. O alargamento desta obrigatoriedade a todos os profissionais de saúde e associações de doentes foi recomendado pelo Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida. O PÚBLICO tentou obter um comentário do bastonário da OM, sem sucesso.
 

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