"Não se trata de renegar o Tratado, mas de acrescentar alguma coisa"

É preciso que as eleições francesas abram uma nova via para a Europa, diz Bersani, o líder do Partido Democrático Italiano. Entrevista publicada originalmente a 9 de Abril de 2012.

É desde 2009 o líder do Partido Democrático italiano, o novo partido de centro-esquerda que agrega correntes que vão desde sectores centristas da antiga democracia-cristã até à esquerda mais social ou mais liberal, incluindo os Democratas de Esquerda, herdeiros do Partido Comunista italiano. Veio a Portugal visitar o seu homólogo português, António José Seguro, depois de ter ido a Paris apoiar François Hollande e assinar, com os seus pares do PSF e do SPD alemão, uma "nova agenda" para a Europa.

Pier Luigi Bersani, 60 anos, foi ministro da Economia do último Governo de Romano Prodi (2006-2008), num curto intervalo entre o reinado de Silvio Berlusconi. Próximo de Massimo D"Alema, como ele oriundo do velho PCI, considerado um "reformista", diz que o seu partido está disponível para apoiar as grandes reformas do Governo Monti no Parlamento. E acredita que é precisa uma nova agenda política para a Europa.

Bastaram alguns meses de governo dito tecnocrático de Mario Monti para mudar a paisagem política italiana. A Itália recuperou o seu papel tradicional na Europa. Os juros da dívida desceram. As reformas começam a ser feitas. Isso quer dizer que esta crise italiana é sobretudo uma crise política - dos partidos políticos? 


Não. Porque Mario Monti não veio depois dos partidos, veio depois de [antigo primeiro-ministro italiano Silvio] Berlusconi. E se chegámos ao limite foi devido, sobretudo, a uma política que durou 10 anos e que se revelou desastrosa.

De qualquer modo, Berlusconi foi eleito várias vezes contra o centro-esquerda.

Mas já não tinha a maioria na fase final. E escondeu os problemas, negou a evidência da crise e não apresentou qualquer solução. Fez o contrário do que era preciso fazer e fez-nos cair nesta crise em que nos encontramos.

O que está a dizer é que, por trás desta crise financeira e económica, não há uma crise das democracias europeias?

Não. Mas noutro sentido. A dimensão europeia não tem uma base democrática suficiente e isso é um problema. Há cada vez mais poderes que as democracias nacionais não conseguem acompanhar. Isso é verdadeiro para a Itália e para os outros países. Mas a particular situação italiana não é uma vitória da técnica sobre a política. Depois de Berlusconi, o que poderíamos fazer...

Poderiam ter optado por eleições.

Podíamos e até podíamos vencê-las. Mas preferimos dizer: antes de tudo, a Itália. Não quisemos vencer sobre a tragédia do país e a verdade é que estávamos numa situação muito séria. Oferecemos a nossa disponibilidade para apoiar um governo liderado por Monti e continuamos convencidos de que fizemos bem. Hoje já temos resultados, mas temos também problemas e dificuldades, porque a crise obriga a medidas muito pesadas, muito duras. Mas estamos no caminho da recuperação.

O Governo Monti já fez a reforma das pensões, mas aquela que é considerada como um teste decisivo - a reforma das leis laborais - está agora no Parlamento e parece enfrentar algumas dificuldades...

Se quisermos ser rigorosos, a reforma mais difícil foi a das pensões. E já foi feita. Foi uma reforma que nenhum país europeu imaginou até hoje poder fazer...

Mas por que é que diz isso?

Porque foi muito profunda e provocou uma mudança radical das expectativas das pessoas. Essa foi a verdadeira grande reforma. Mas o que interessa é que o Parlamento tem dado um forte apoio à acção reformadora deste governo.

Na reforma das leis laborais há a fortíssima oposição da principal central sindical, que já prometeu uma greve geral. A experiência italiana mostra que outros governos já tentaram levar a cabo esta reforma e falharam. O que vai fazer o PD?

Em primeiro lugar, é preciso distinguir os sindicatos do Parlamento. Os sindicatos têm uma estratégia própria e querem ver primeiro o que se vai passar no Parlamento. O que o Partido Democrático diz é que esta reforma é necessária e, por isso, estamos empenhados em levá-la até ao fim. Faremos o mesmo que fizemos com a reforma das pensões: apresentámos as nossas propostas e conseguimos alterar alguma coisa.

E agora o que querem mudar?

Há um aspecto que queremos corrigir em matéria de despedimento [individual]. Aceitamos modificar a norma segundo a qual o trabalhador despedido é automaticamente reintegrado caso o tribunal considere que não houve justa causa. O célebre artigo 18...

Que só se aplica a empresas com mais de 15 trabalhadores, portanto, exclui muitíssimas.

É verdade. Nós dizemos que aceitamos modificar esta norma mas de que forma? Com que modelo? Toda a gente diz que as melhores regras para o mercado de trabalho são as alemãs ou dinamarquesas. Muito bem. Não temos nada a opor que se adapte o artigo 18 de acordo com a legislação alemã ou dinamarquesa. Mas não estamos de acordo em que deixe de haver a possibilidade de um juiz dizer que um trabalhador deve ser reintegrado, passando apenas a poder decidir que tem de receber uma indemnização. Não estamos de acordo. Pode vir a ser uma decisão muito rara, mas é uma questão muito sensível para o equilíbrio de forças entre as duas partes. Temos uma ideia do modelo a que deve conduzir a reforma, e que deve continuar a ser europeu e não americano.

Mario Monti também tem justificado a sua reforma laboral com uma dualidade do mercado de trabalho - entre os que têm todas as garantias e os que não têm nenhumas, em geral os mais jovens.

Só no último ano a Itália perdeu um milhão de empregos. Em situações de crise como a que vivemos, essas garantias a que se refere desaparecem. Nós queremos condições iguais para todos. E o que lhe digo é que a Itália aceitou, até agora, reformas que na Europa ainda ninguém aceitou. E nós estamos a apoiá-las.

Esteve recentemente em Paris para apoiar François Hollande e participar numa conferência sobre as propostas dos partidos de centro-esquerda para a Europa, que hoje é governada na sua grande maioria pela direita. A crise não foi uma oportunidade para a esquerda?

A direita tem tirado partido do medo que a crise e os efeitos da globalização geram sobre as pessoas e os mecanismos de defesa que daí resultam - individuais, corporativos, nacionalistas. A direita tem gerido este período de crise a partir destes sentimentos. As opiniões públicas partilham-nos.

Porque têm medo?

De certa forma, as pessoas defendem-se. Um alemão defende-se dizendo que é mais forte do que um português. Um notário acha que tem mais chances do que um trabalhador fabril. Alguém de Milão pensa que tem mais chances do que alguém de Nápoles. Mas a verdade é que, até agora, os resultados destas políticas foram muito escassos. Hoje há uma oportunidade - mais do que uma oportunidade, um dever - de apresentarmos uma nova ideia de Europa, uma nova agenda, um novo programa. Não apenas em nome dos progressistas mas em nome de Portugal, da Itália, dos outros. A austeridade, só por si, é cega e é um paradoxo. O nosso projecto - que já assinámos com o SPD [alemão] e o PSF [francês] - diz, basicamente, que queremos a taxa sobre as transições financeiras, os project bonds, os eurobonds, ou seja, a mutualização parcial da dívida. Também defendemos que um país que tem a possibilidade real de expandir a sua economia deve fazê-lo. É preciso que as eleições francesas abram essa nova via que permita à Europa pensar numa outra política, que leve em conta o facto de ninguém se conseguir salvar sozinho. Nem a Alemanha.

Esse programa comum é possível quando hoje vemos que as diferenças são mais de geografia do que de ideologia?

Se ler o documento que aprovámos em Paris verifica que não se trata de uma proposta de renovação total da Europa, mas dos quatro ou cinco pontos que referi e sobre os quais há uma convergência muito significativa. Isso significa que também o SPD vai defender estas coisas perante a sua opinião pública.

E se calhar por isso perde as eleições.

Não. É preciso explicar as coisas.

O novo Tratado para a zona euro, que todos os governos assinaram, traduz a estratégia alemã para esta crise. Hollande diz que quer renegociá-lo, se ganhar as eleições. Está preparado para o aprovar no Parlamento italiano?

Vamos aprová-lo. Mas diremos que ele não chega, só por si, e que pode ser mesmo um problema. Se a França, na sua autonomia, entender que ainda precisa de discuti-lo, abrir-se-á uma discussão. E a Itália, Portugal, Espanha também podem ter algum interesse em alargar a discussão. Não se trata de renegar o fiscal compact, mas acrescentar alguma coisa. Creio que é esse o caminho.

Esta crise europeia tem também a ver com as novas condições da competitividade da economia europeia num mundo globalizado onde emergem novas potências económicas. A resposta da esquerda é suficiente? Não é apenas o regresso a melhores dias que já não voltam, em que o modelo social europeu era sustentável?

É preciso reformá-lo. Mas atenção: a Europa, no seu conjunto, continua a ser a maior plataforma económica, científica, comercial do mundo. Se quiser competir ao seu nível tem de manter um modelo social que não é certamente o chinês! A Europa precisa de saber quais são os domínios em que pode competir com vantagem. Devemos investir na inovação, na investigação, nas infra-estruturas modernas. É isso quer defendemos. A Europa não terá problemas se conseguir agir como um todo.

Então por que é que a Europa não consegue taxas de crescimento significativas, e isso já nem sequer é de agora?

Porque a Europa ainda não é Europa. É preciso criar um verdadeiro mercado interno...

Como defende Mario Monti...

Sim e ele tem toda a razão. Se todos na Europa insistirem em que têm de exportar, então eu pergunto: quem compra? Os marcianos? É preciso exportar, mas também é preciso desenvolver um mercado interno integrado e aqueles países que podem adoptar políticas expansionistas devem fazê-lo. Não se esqueça que somos 550 milhões de consumidores.

Portugal e a Itália foram, precisamente, os dois países da União que menos cresceram na última década. Adiaram demasiado as reformas?

Para a Itália, é um problema de atraso nas reformas, é verdade, mas é também o problema de uma dívida demasiado elevada e demasiado pesada, que dura há demasiado tempo. Não podemos fazer investimentos públicos que ajudem à inovação e ao crescimento se temos de pagar todos os anos 70 mil milhões de euros para o serviço da dívida.

Em 2007, com a fundação do Partido Democrático, houve uma grande expectativa sobre um novo modelo de centro-esquerda na Europa. Depois houve as "primárias". Mas o PD continua a não conseguir ganhar eleições. Demasiadas divisões? Demasiadas facções?

Somos hoje, claramente, o primeiro partido italiano, mantemos quatro a seis pontos de vantagem em todas as sondagens em relação ao partido de Berlusconi. Disso não tenha qualquer dúvida. Somos um partido um pouco extraordinário, com uma constituição plural - de cultura católica, democrática, socialista, ambientalista, liberal. Um partido progressista. Pensamos que esta nossa experiência é útil também para os nossos parceiros europeus no sentido de abrirem mais as suas portas. A nossa experiência é mais arejada mesmo que envolva mais riscos. Mas deixe-me que lhe diga que tenho a certeza de que vamos ganhar as próximas eleições.

 

Entrevista publicada originalmente a 9 de Abril de 2012.
 
 

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