Ai Abana, Abana!

O grande sismo do Japão de 2011 veio sem aviso. Um evento catastrófico com esta magnitude, a acontecer num outro país sem cultura de reconhecimento e mitigação do risco, como Portugal, teria consequências ainda mais desastrosas.

Japão, Tohoku, 2011: 15.878 mortes, 2713 desaparecidos Haiti, 2010: 316.000 mortos China, Wenchuan, 2008: 68.000 mortos Samatra-Andamão, 2004: 230.000 mortos

Em comum? Todos estes sismos foram de enorme magnitude, causaram milhares de mortos e incalculáveis danos materiais. Mas não só. A magnitude do sismo registada superou a magnitude máxima prevista para a zona. Subestimar é aqui a palavra-chave.

Num recente artigo publicado na revista Seismological Research Letters, Chris Goldfinger, da Universidade Estadual do Oregon, e co-autores afirmam que alguns sistemas são capazes de gerar sismos de magnitude muito superior às conhecidas ou esperadas. Os autores sugerem que magnitudes máximas ou modelos de recorrência poderão estar subestimados se nos basearmos unicamente num registo temporal curto. E registos históricos com mais de 1000 anos, como os do Japão, são manifestamente insuficientes e curtos (à escala de tempo geológica).

Há que ir mais longe e incorporar o registo geológico para considerar ciclos temporais longos. Nada de novo aqui. Geólogos e geofísicos têm-no feito ao longo de décadas. É a integração do seu conhecimento na determinação da perigosidade e na análise de risco que varia substancialmente de país para país. E mesmo quando a informação flui, falhamos. O sistema Terra é complexo, dinâmico e, em muitos domínios, imprevisível por falta de conhecimento. O geocientista reconhece isso. Os decisores políticos e os meios de comunicação, nem sempre. Exigem certezas e essas não as podemos dar.

Ora, neste contexto onde as incertezas perante o tão complexo sistema Terra superam grandemente as certezas, entra a abominável situação que aconteceu em Áquila, cidade italiana com uma pesada herança histórica de sismos. A 6 de Abril de 2009, e no contexto de uma crise sísmica, 309 pessoas morreram na sequência de um sismo.

Após este trágico evento, o vice-presidente da Protecção Civil e seis cientistas do Conselho dos Grandes Riscos foram responsabilizados criminalmente e condenados a seis anos de prisão. Aos olhos do tribunal, os cientistas deram às autoridades informação vaga, genérica e ineficaz sobre a natureza, a causa e os desenvolvimentos futuros da perigosidade sísmica na região.

Episódios de actividade sísmica como os que precederam o sismo de Áquila são comuns na região. Giampaolo Giuliani (não cientista), utilizando uma metodologia não convencional para previsão de sismos, lançou dois falsos alarmes a 18 de Fevereiro (emRoio) e a 30 de Março (em Sulmona), com os expectáveis efeitos alarmistas na população. Não há nenhuma indicação de ter enviado alguma previsão do sismo de 6 de Abril ao público ou às autoridades.

Perante as afirmações alarmistas de Giampaolo Giuliani, o Instituto Nacional de Geofísica e Vulcanologia (INGV) e a Protecção Civil emitiram comunicados para acalmar a população. Em resposta às previsões, afirmaram que a probabilidade de um grande sismo ocorrer era pequena. Tecnicamente, é uma afirmação correcta.

A 31 de Março, a Protecção Civil reuniu publicamente o conselho dos Grandes Riscos em Áquila, mais uma vez com o intuito de acalmar a população. O vice-presidente da Protecção Civil, Bernardo de Bernardinis (mas não os cientistas) afirmou não haver risco, porque há uma libertação contínua de energia e que a situação parece favorável. Cientificamente, esta afirmação é incorrecta e transmite uma falsa sensação de segurança.

A 6 de Abril, centenas de pessoas morrem nas suas casas, sob os escombros. A falsa sensação de segurança divulgada pelas autoridades fez com que muitas famílias permanecessem em casa.

Não obstante da necessidade das famílias das vítimas em encontrar um culpado, a acusação e posterior condenação em tribunal dos cientistas causa um perigoso precedente. Não foram eles os responsáveis pela formulação e comunicação de informações tecnicamente incorrectas. Nem tão-pouco poderiam eles, face ao conhecimento actual, prever tal evento. Um sismo de tal magnitude era possível mas pouco provável, e essa afirmação foi veiculada, e continua verdadeira.

O papel dos conselheiros científicos é fornecer aos decisores políticos informação objectiva sobre perigosidade. São os representantes do governo que, perante a informação técnica, ponderam e decidem entre os benefícios da comunicação da perigosidade e a eventual consequência do falso alarme.

O grande sismo do Japão de 2011 veio sem aviso. Um evento catastrófico com esta magnitude, a acontecer num outro país sem cultura de reconhecimento e mitigação do risco, assim de repente lembro-me de Portugal, teria consequências ainda mais desastrosas. E poderá acontecer? Bom, será difícil ignorar aquele que foi o maior e mais catastrófico evento sísmico com registo histórico na Europa, o sismo de 1755.

Há ainda um longo caminho a percorrer no estudo e caracterização das estruturas potencialmente geradoras de sismos, mas a avaliar pela determinação em secundarizar e subfinanciar o conhecimento geológico do território português, temo que as geociências entrem em modo de “pausa”. Infelizmente, o planeta Terra não tem esse botão de “pausa”.

Eventos catastróficos naturais não calendarizam actividades em função das avaliações do FMI. E assim ficamos. Não adianta justificar com indicadores de rapidez de resposta em situações de emergência, nem simulacros. Desconhecendo o território, desconhece-se a perigosidade e subestima-se o risco. Consequentemente, a resposta das autoridades será insuficiente.

Nesta receita para o desastre juntam-se, entre outros factores, a total ausência de preparação do cidadão-comum e a construção deficiente. Quantos edifícios seguem realmente (e não apenas em plano) as normas de construção anti-sísmica? Quantos edifícios estratégicos (hospitais, polícia, protecção civil, bombeiros, etc.) escapam as estas normas?

Geóloga do Centro de Recursos Minerais, Mineralogia e Cristalografia da Universidade de Lisboa

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