Divórcio: é fim e é recomeço

O PÚBLICO recolheu dados sobre casamentos, divórcios e as decisões que definiram o perfil da família portuguesa desde 1864. São histórias em paralelo com a visão de sociólogos, um psicólogo, uma demógrafa e uma jurista, em cinco trabalhos que serão publicados até domingo, com uma reportagem na revista 2 nos dois concelhos do continente com o maior e menor número de divórcios por cem casamentos, em 2011.

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Os primeiros divorciados registados nos censos em Portugal são de 1911: eram 2685. Um século depois, contaram-se 594 mil. Por trás de cada número está o fim de um casamento, mas também um recomeço.

O divórcio de Lurdes, hoje com 75 anos, foi há quase quatro décadas. Estava casada há 15 anos, tinha 37 e vivia-se o 25 de Abril. Um dia saiu de casa desesperada, depois de o marido ter batido na filha. “Saí a chorar, só me lembrava onde era o Ministério Social, meti-me num autocarro e foi lá que fui. Entrei por ali dentro a chorar, vi duas senhoras e contei-lhes tudo. Nem sabia onde é que tinha de ir para me divorciar."

A filha tinha 17 anos. Lurdes engravidara antes de casar, para evitar que o futuro marido fosse enviado para fora do país. Casar-se-iam só dois anos depois de a filha nascer, já em Lisboa. Nessa altura, não podia ter uma conta no banco em seu nome: “Tinha dinheiro escondido em todos os cantos da casa.” Sempre à revelia do marido, estudou, começou a trabalhar como modelista (fazia moldes de roupa para as costureiras) e rapidamente passou a ter um ordenado superior ao do marido.

Estava no seu “canto”, mas o desespero em que vivia, sobretudo com violência, foi abafando qualquer receio. “Fui para o divórcio. Fui a pensar que um dia acordava morta.” Tinha dinheiro para pagar um advogado e foi isso que fez. Na altura em que pediu o divórcio, a Concordata assinada entre Portugal e a Santa Sé em 1940 ainda não tinha sido revista. Nessa altura, dissolver um casamento católico era impossível. Num artigo escrito na revista Seara Nova em 1966, falava-se da necessidade de pôr “cobro a uma montanha de inúteis sofrimentos” trazidos com a indissolubilidade legal do casamento, que acarretara a “milhares e milhares de casais situações dúbias, vergonhosas ou simplesmente dramáticas”. A revisão da Concordata chegaria em 1975 e instituía o direito ao divórcio para quem tivesse casado pela Igreja.

É preciso recuar a 1910, dia 3 de Novembro. Na primeira página do jornal A Capital, escrevia-se pela primeira vez sobre a promulgação da Lei do Divórcio. “Conseguimos hoje desvendar o mysterio. No ministério da justiça, no meio da papelada bolorenta que se enfileira nas estantes […] vimos, ainda fresca de tinta de impressão, a lei que estabelece o divorcio em Portugal. D’essas frágeis folhas de papel como que irradiava um hymno triumphal à liberdade e á justiça.”

Dava-se um passo. A lei permitia a um casal divorciar-se e refazer a sua vida. Mas com limites: a mulher só poderia voltar a casar-se um ano após o divórcio, o homem seis meses depois. Estabelecia-se também o divórcio litigioso, e o adultério era uma das causas legítimas, para além do “vicio inveterado do jogo de fortuna ou azar”.

No ano seguinte, o recenseamento contou 2685 divorciados, mais mulheres do que homens. Ao longo de um século, as leis mudaram, a população cresceu e os divórcios aumentaram. Em 2011, contaram-se cerca de 594 mil divorciados, segundo os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) e a média de idade do divórcio estava nos 41 anos (em 2012 passou para os 42), de acordo com o Instituto dos Registos e Notariado (IRN).

“Não há divórcios felizes”
Mesmo tendo só casado pelo civil, Lurdes esperou dois anos até ver o processo de divórcio acabado. “Foi um alívio quando vi os papéis, ainda os tenho comigo.” Ganhava bem, tinha capacidade de gerir a sua vida e a da filha, mas durante um tempo “ainda ia dar com dinheiro escondido em casa”.

É nessa altura, logo a seguir a 1975, que há um pico de divórcios e casamentos. “Aquilo que estava a acontecer era como uma panela de pressão. Havia relações artificiais que se mantinham”, explica Maria João Valente Rosa, demógrafa e directora da Pordata. A partir de então, os divórcios aumentaram sempre. Poderá dizer-se que hoje um divórcio tem menos peso emocional? “Um divórcio é sempre um divórcio e isso deixa marcas. Não há divórcios felizes”, comenta Rita Sassetti, advogada especializada em Direito da Família, que há mais de 20 anos acompanha casos de divórcio. “Essas marcas passam com o tempo, mas estes são processos de afectos. E, num divórcio, as pessoas revelam um lado pior que nem se imaginava ser possível.”

É disso que fala Genoveva Garzón. Casou-se e divorciou-se em Portugal, mas foi na Colômbia que nasceu há 53 anos. Se há quem veja num divórcio os primeiros sinais de independência, há quem veja nele a recuperação dessa independência. Aos 14 anos, ainda na Colômbia, tinha tomado uma decisão: ir para uma escola militar. Os pais eram testemunhas de Jeová e impediram a escolha, portanto a decisão foi outra. “Um dia, de manhã, saí de casa, não levei mala nem roupas nenhumas e meti-me num autocarro.” Fugiu para Caracas, na Venezuela, com a assinatura dos pais falsificada. Só dois anos depois viria a dar-lhes notícias.

Na Venezuela, ninguém sabia nada sobre o seu passado e começou a trabalhar como interna na casa de um pintor peruano, a tomar conta das duas filhas. “Uma criança a tomar conta de crianças.” Levava-as ao ballet, que também passou a frequentar. Um dia passou pela cidade um casting de dança para um circo, no qual participou e passou. “Trabalhei lá dos 17 aos 21. Éramos 80 artistas e andávamos por toda a Venezuela.” Quando foi seleccionada para um tour pelos países vizinhos, algo a impediu de ir. “Conheci o que é hoje o meu ex-marido e decidi ficar em Caracas.”

O maior erro
Foram viver juntos três meses depois de se conhecerem e nasceu a primeira filha. Foi essa “a melhor parte do casamento”, sem que estivessem casados. Quando a situação económica na Venezuela começou a agravar-se, o facto de o marido ser português motivou a vinda para Portugal, em 1988. Vinha grávida do segundo filho e casaram-se quando chegaram. “Se calhar, foi esse o maior erro da minha vida.”

Seguiram-se os problemas com trabalho e dinheiro e entre o casal já pouco estava bem. Conseguiu emprego num restaurante e aos poucos deu por si a “ganhar muito bem”. Todo o dinheiro que ganhava tinha de entregar ao marido. “Ele dizia-me que eu não o sabia gerir. Eu estava dependente. Não havia violência física, só psicológica, e cheguei a um momento em que pensava de mim o que ele dizia.” Durante 15 anos, “não deixar os filhos sem pai” e recear a sua segurança económica foram as razões para aguentar o casamento. “Já só pensava em conseguir um quarto, nem era numa casa.”

Divorciou-se quando os filhos tinham 22 e 15 anos e ambos ficaram com o pai: a filha escolheu ficar com o pai e o filho “corria o risco de passar muito tempo sozinho” dado os trabalhos que a mãe tinha fora de Lisboa. Decidiram que, aos 18 anos, ele escolheria. “No dia em que fez 18 anos, às oito da manhã, apareceu-me à porta de casa com uma saca de roupa. Ficou a viver comigo.”

Passaram-se oito anos desde o divórcio. “Se me deu liberdade? Sim. E independência. Fiz uma promessa a mim mesma: ia mostrar que conseguia gerir o meu dinheiro. Prometi que ia comprar uma casa e comprei.”

Estigma social? “Ainda existe”
“Menor predisposição para o sofrimento, mais autonomia financeira, menos dependência das mulheres. Hoje, cada um tem hipótese de se reconstituir à margem do casamento”, sublinha a directora da Pordata. Também Maria das Dores Guerreiro, socióloga, professora do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE-IUL), sublinha a evolução da sociedade portuguesa, de uma fase “tradicional, agrícola e camponesa” para uma fase “industrializada e urbanizada”, nos anos 1970 e 80. A posição da mulher passa de uma fase em que não geria o seu património e precisava do consentimento do marido para sair do paí, para a fase em que “se libertou de um conjunto de conceitos”. Entre eles fica a emancipação sexual. “Hoje, os jovens podem até não ter autonomia financeira, mas têm autonomia sexual e afectiva.” Só que, lembra a socióloga, é preciso não esquecer as várias velocidades a que Portugal se move. “Uma boa parte da sociedade portuguesa ainda tem muito presente um quadro cultural tradicional.”

Quanto ao estigma social, as opiniões dividem-se. Para Manuel Peixoto, psicólogo, ainda há pressão familiar. “Há famílias em que o divórcio acontece há três gerações. Há outras onde nunca houve nenhum e isso tem um peso tremendo." Rita Sassetti defende que o estigma social ainda existe. “Há muita gente que não se divorcia porque não quer que lhe apontem o dedo. Pessoas que estão separadas, que vivem em casas diferentes, com responsabilidades parentais decididas em tribunal e deixam o divórcio para mais tarde. Muitas vezes mantêm a aliança no dedo. Outros vivem na mesma casa, com um silêncio assustador, com férias sempre em grupos de casais porque já não conseguem fazê-las a dois.”

É no sentido da libertação que Maria João Valente Rosa considera o divórcio como “um tributo ao amor”. Permite que as pessoas refaçam a vida. E foi o que Mariana (nome fictício), de 43 anos, fez várias vezes. Casou-se aos 23 para poder sair de casa. Tinha engravidado enquanto namorava e quis sair de casa, só que para a mãe, na altura, “não tinha lógica sair de casa para viver sozinha”.

Um ano depois acabou por se divorciar. “Pela irreverência, mas também por não querer aceitar uma anulação pessoal.” Após esse divórcio, namorou dois meses antes de se voltar a casar, uma relação que durou dez anos e na qual teve uma segunda filha. A incompatibilidade que se foi criando determinou o desfecho: divorciaram-se, mas mantiveram uma boa amizade. Mariana ajudou o ex-marido a procurar casa e a decorá-la, e a relação assim se manteve, até mesmo depois de ele ter voltado a casar-se.

Voltar a casar-se após um divórcio é, aliás, uma tendência que tem vindo a contrariar a diminuição dos primeiros casamentos. O recasamento aumentou 52% em 15 anos, embora haja mais homens do que mulheres a voltar a casar-se, de acordo com dados do INE.

Só que se o casamento já não é necessariamente para a vida, o divórcio também pode não ser. Sete anos depois da separação, Mariana e o ex-marido reaproximaram-se, decidiram ir viver juntos e estiveram em união de facto quatro anos. Hoje, Mariana diz que aquilo que um dia os tinha impedido de viverem juntos continuava lá. “Não era por ser segunda vez que me ia deixar ficar e arrastar-me. Optei pela separação.” E foi aí que viveu uma mudança: esteve sozinha, “foi um ano em que andei comigo ao colo”.

A história é contada sempre sem remorsos nem rancores. Fala com os ex-maridos e revê os relacionamentos como boas fases na sua vida, em que foi feliz. Apenas quis mudar quando não se sentiu bem a 100%. Diz ter percebido o que queria e não queria para si própria. E, apesar desses relacionamentos, ainda estava para vir aquele que iria custar mais. Pôs "as mãos no fogo e fui feliz como nunca". O fim da relação acabou por coincidir com o momento em que, pela primeira vez, perdeu o emprego. “Abriu-se uma cratera e só há uma coisa de que tenho medo agora: não voltar mais a ser o que fui desta vez.”

Em parte foi o “medo terrível da solidão” que a levou a algumas decisões irracionais. Esse medo, diz o psicólogo e terapeuta familiar Manuel Peixoto, depende da maturidade de cada um. “Ninguém é verdadeiramente adulto se não se puder imaginar sozinho e bem. Há quem nunca o aprenda e isso condiciona muitas vezes a separação”.

Pelo meio, os filhos
Em muitos casos, quando se entra num processo de divórcio, o casal já não está sozinho: existem filhos. Essa é a principal preocupação da advogada Rita Sassetti. “Os primeiros dois anos de um divórcio são recheados de conflito. Quando uma mãe e um pai não se falam, como é que vão chegar a acordo nas questões de particular importância das crianças?”

Paulo Soares e a ex-mulher chegam a acordo quanto ao filho. A maior dificuldade foi o “silêncio sepulcral em casa”. Casou-se aos 34 anos, depois de dois anos de namoro em que cada um viveu na sua casa. Não notou muita diferença entre o namoro e o casamento, “mas um filho significa uma mudança de 180 graus e as nossas vontades passam para segundo plano”. Estiveram casados três anos, até decidirem que já não funcionava: optaram pelo divórcio. Foi há cinco anos, o filho tinha dois, e hoje Paulo tem 43. “O choque é aí. É voltar à estaca zero, depois de viver uma vida a dois. Partilhas-te a ti com outra pessoa e de repente é um silêncio. Andei dois anos mal. Com filhos é mais complicado, isso é o que dói mais.”

Hoje, pai e mãe dividem o tempo com o filho. "Acaba um ciclo de vida e começa outro.” Já a possibilidade de voltar a partilhar casa com alguém, conta Paulo, não está fora de causa, com uma condição. “Só se for para ser sério. E se me juntar com alguém que tenha filhos, assumo os outros filhos como meus.”

Para além da questão dos filhos, que tem “uma tónica muito grande” na lei do divórcio de 2008, como refere Rita Sassetti, há outras questões. A redução dos trâmites burocráticos e dos custos foram apontados pela socióloga Maria das Dores Guerreiro, em parte para justificar como é que as mudanças na lei estão associadas às oscilações dos números de divórcios. Pode chegar a haver uma diminuição de divórcios num ano, resultante de um compasso de espera pela entrada de uma nova lei. “Os movimentos bruscos nos divórcios estão sempre associados às mudanças na lei. Nunca nada acontece num ano”, sublinha Anália Torres, socióloga e professora no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP).

Crise no divórcio?
Apontar uma só razão para uma oscilação no número de divórcios num ano é arriscado, defendem as investigadoras. Assim, olhar para a quebra de quase 3%, em 2011 face a 2010, como resultado da crise ou das dificuldades económicas não é linear. “A crise pode jogar nos dois sentidos”, acrescenta Maria das Dores Guerreiro. Tanto pode forçar os casais a ficar juntos como motivar a separação ao despertar tensão e conflitualidade.

Para lá dos factores externos, o divórcio vem com vários pesos emocionais. “É o fracasso de um projecto para o futuro e é ter de lhe fazer um luto antecipado”, refere Manuel Peixoto. Há quem o assuma como “uma mudança brutal” ou “um novo ciclo”, quem receie a solidão e quem ganhe ou recupere a independência.

Hoje, Lurdes tem 75 anos, e o seu estado civil é ainda de divorciada. Só que há dois anos houve uma mudança: “conheci um senhor através de duas amigas em comum”. Ficaram juntos e, aos 75 e 72 anos, aproveitam agora tempos diferentes. “Temos passeado muito. Já decidimos que cada um mantém os seus amigos e as suas vidas durante o dia.”

É um fim que reforça a multiplicidade de formas de viver o divórcio ao longo do século que separa os primeiros números dos mais recentes. Contudo, por trás de cada número, independentemente dos motivos da separação e das emoções dos tempos que se seguiram, houve sempre algo em comum: um recomeço.
 
 
 

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