Igreja portuguesa considera renúncia um acto de grande coragem

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Papa, na visita a Portugal, na celebração no Terreiro do Paço a 11 de Maio de 2010 AFP

Apesar de o Papa já ter declarado que não via com maus olhos a renúncia, o anúncio da sua saída foi recebido, em Portugal, com alguma surpresa.

É um "acto de grande coragem e de grande amor", classifica o padre José de Tolentino Mendonça ao PÚBLICO. Foi um "acto extraordinariamente corajoso", define D. José Policarpo, presidente da Conferência Episcopal Portuguesa à Rádio Renascença. Coragem é também a palavra usada pelo bispo de Viseu, Ilídio Leandro: "Era necessário vencer toda uma tradição que não aponta para ser normal um acto destes”, justifica à Lusa. Foi um acto de coragem, mas também “de muita fé, porque vê-se que tomou esta atitude por amor à Igreja e por sentir que as suas forças já não permitiam conduzir a barca de Pedro [a Igreja] nos momentos e nas circunstâncias em que é necessário vigor, determinação, firmeza e aquela presença que, pela doença, já não poderia ter”.

Também Carreira das Neves, especialista em Bíblia, olha para este acto com "satisfação". O cónego Manuel Lourenço, especialista em Direito Canónico, diz que este é um acto que ajuda a reflectir sobre as limitações humanas. Victor Feytor Pinto, responsável da Pastoral da Saúde, defende que a decisão "revela enorme lucidez". É um "gesto único" na Igreja, resume D. Januário Torgal Ferreira. Mas esta decisão poderia abrir discussão a nova forma de eleição, propõe José Filipe Rodrigues, frade dominicano.

A declaração de Bento XVI, conhecida esta segunda-feira, de manhã, no Vaticano, foi "muito comovida e de grande autenticidade", aponta o padre e poeta José de Tolentino Mendonça, a partir de Roma, ao PÚBLICO.

O ambiente que se vive na Praça de São Pedro é de grande emoção e perturbação, testemunha. Contudo, olha para esta decisão como própria do século XXI. Ser chefe de Estado e da Igreja Católica é um desafio maior num mundo globalizado e a grande mediatização exige uma capacidade física grande para responder às múltiplas solicitações, continua Tolentino de Mendonça.

"Foi uma surpresa. Isto é um acto único na Igreja, mas não é nada de anómalo. As últimas fotografias e imagens que vi do Papa já mostravam um Papa muito cansado", adiantou D. Januário Torgal Ferreira, bispo das Forças Armadas, à Lusa, confessando ter recebido com surpresa o anúncio da resignação.

Também D. José Policarpo admite ter sido apanhado de surpresa com o anúncio. "Este foi um acto extraordinariamente corajoso, que vai introduzir na Igreja um ritmo novo, mas só o futuro vai dizer qual. Sobre o ponto de vista canónico, esta situação está prevista: como ele é a autoridade máxima, apenas a ele lhe cabe de tomar a decisão", disse o cardeal à Renascença.

Por seu lado, o bispo do Porto, D. Manuel Clemente, considera que a decisão “é reveladora de um testemunho de sabedoria, de coragem e de verdade com que Bento XVI assumiu as funções tão difíceis de sucessor de Pedro”, disse à Renascença. Trata-se de “um testemunho de coragem e de verdade”.

Filipe Rodrigues acrescenta a palavra "humildade". "É de louvar. [Bento XVI] quando viu que não estava capaz teve a humildade de colocar o cargo à disposição. É um Papa que continua a surpreender pela sua humildade", defende o frade dominicano ao PÚBLICO.

Bento XVI e João Paulo II
Para o biblista Carreira das Neves, esta decisão é um "sinal dos tempos". "É com satisfação [que assisto ao anúncio], porque estamos a viver tempos mais democráticos e esta decisão mostra que a Igreja encaminha-se para aceitar os desígnios da democracia", declara Carreira das Neves ao PÚBLICO.

"Não há nenhuma lei divina ou do Evangelho" que diga que um Papa não pode abdicar, continua Carreira das Neves, recordando que gostaria que João Paulo II o tivesse feito, mas que, depois da sua morte, reconheceu que a sua vida foi um exemplo. "Ele venceu-me, porque a sua morte mostrou como levar a cruz até ao fim e foi um exemplo para os nossos dias", esclarece o investigador.

Também o especialista em Direito Canónico Manuel Lourenço considera que a não resignação de João Paulo II foi um "testemunho". Mas que não tinha de ser seguido por Bento XVI, um homem que deixou antever em entrevistas e em livros que não punha de lado a hipótese da resignação. "Este Papa tem feito um esforço para que as pessoas reflictam, através da fé, sobre as mudanças no mundo, sobre a sua continuidade", e esta sua decisão reflecte isso mesmo, defende.

"Este Papa é de um realismo extraordinário e, surpreendendo toda a gente, ele executou a sua vontade na consciência de que a Igreja tem de ser governada com toda a lucidez e toda a força", avalia Victor Feytor Pinto. E se João Paulo II quis dar o exemplo de que é possível morrer com dignidade, "numa época em que se defende a destruição da vida [eutanásia]", Bento XVI quer mostrar que, apesar da idade, é possível ter "consciência para tomar decisões", interpreta o cónego.

Segundo D. António Vitalino Dantas, bispo de Beja,  o “ofício de Papa exige, hoje em dia, muita presença, muita lucidez e muita força física” da parte de quem o exerce, “para poder estar presente e não desiludir aqueles que vão ao seu encontro". Por isso, Bento XVI "manifestou que realmente quer dar lugar a outro”, para que o seu sucessor exerça “o ministério com mais força física”, sublinha à Lusa.

"É louvável esta atitude do Papa, que é uma decisão de um homem lúcido e com muita fé e que está consciente de que os destinos da Igreja estão nas mãos de Deus e não nas mãos do homem", diz por seu lado D. José Alves, arcebispo de Évora à Lusa.

Portas abertas para mais jovem?
O cónego Manuel Lourenço lembra que não existe nenhuma regra que diga que o Papa deve morrer em funções. Segundo o Direito Canónico, só os padres e os bispos põem os seus lugares à disposição a partir dos 75 anos.

A resignação pode ser uma mensagem aos cardeais que irão escolher o sucessor de Bento XVI de que deverão optar por uma pessoa mais jovem? "Gostaria que fosse um Papa bem preparado. Num mundo em movimento e de grandes modificações, é natural que escolham um mais novo, mas o que queremos é que seja uma pessoa capaz", responde Carreira das Neves.

Não tem necessariamente de ser um Papa jovem, dizem Manuel Lourenço e Feytor Pinto, lembrando homens como Leão XIII – eleito aos 67 anos, que governou a Igreja até aos 93, e responsável pela encíclica Rerum Novarum, sobre os direitos e os deveres do capital e do trabalho – ou João XXIII, que governou apenas quatro anos e lançou o Concílio Vaticano II, que mudou a Igreja. Portanto, "cada Papa traz a sua missão", defende Feytor Pinto. "Guiado pelo Espírito Santo", acrescenta Manuel Lourenço.

Cabe aos cardeais encontrarem uma "pessoa com perfil capaz de conduzir os destinos exigentes da Igreja neste tempo concreto", conclui Tolentino de Mendonça.

Para Filipe Rodrigues, frade dominicano, esta é uma boa altura para os cardeais reflectirem sobre a governação da Igreja e dá o exemplo das ordens religiosas que elegem democraticamente o seu líder para um número fixo de anos, ou seja, por mandatos. "Não é melhor uma eleição por mandatos?", pergunta. A saída de Bento XVI devia deixar "pistas de reflexão", propõe.
 
 

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