Há uma linha que separa um deputado de um programador de televisão?

Em Portugal, há uma linha que separa a geração do tempo do míldio e a geração que veio depois do míldio.

A culpa é do engenheiro Sousa Veloso, génio ao mesmo tempo do mundo rural e do audiovisual.

O TV Rural, programa que ele inventou, apresentou, produziu e realizou entre 1960 e 1990 na RTP, sobreviveu incólume ao declínio do sector.

A agricultura desaparecia, o TV Rural aguentava. Uma relíquia da era do canal único e da televisão a preto e branco que sobreviveu incólume até aos anos do deslumbramento cavaquista.

O país trocou a enxada, a sementeira, o míldio, pelo centro comercial, o jipe, o subsídio europeu para não produzir.

O engenheiro Sousa Veloso continuou a acabar cada programa com a sua frase seminal: "Senhores telespectadores, despeço-me com amizade até ao próximo programa."

O PSD e o CDS quiseram voltar atrás no tempo. E puseram à discussão no Parlamento uma recomendação à RTP, para que insira na grelha de serviço público de televisão um TV Rural do século XXI.

Isto porque, diz-se, a agricultura voltou a crescer. Vão-se os jipes, voltam as enxadas.

Ao que parece, nos dois partidos da maioria ignora-se que há uma linha que separa os partidos políticos de um programador de televisão.

Essa linha não existia em 1960 (o TV Rural nasceu de uma parceria com o Ministério da Agricultura, com objectivos não muito diferentes dos invocados agora pelos dois partidos) e é estranho que uma ideia como esta tenha germinado na horta política que nos governa.

Separar as águas é um bom princípio, tanto na política como na agricultura. Depois de falhar a privatização, quererá a maioria desforrar-se tratando a RTP como uma vinha, cultivada sob a sábia e benigna orientação dos senhores deputados do PSD e do CDS?

Não podia haver corolário pior para a desastrosa gestão do dossier do serviço público pela maioria. É como se o míldio, além do tomateiro, da batateira ou da vinha, vingasse também nos socalcos parlamentares de São Bento.

E impedisse os deputados de distinguir as fronteiras que não podem ultrapassar.

Valha-nos o engenheiro Sousa Veloso!
 
 
 

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