Cortar despesa pública não é reformar o Estado

O relatório do FMI foi muito mal recebido e percebe-se porquê. Fez-se passar pelo que não é. Não é um estudo e não é um programa de reforma do Estado. É, principalmente, uma proposta para cortar, de forma permanente e já a partir do próximo orçamento, 4.000 milhões na despesa do Estado com salários de funcionários públicos, apoios sociais e pensões de reforma.

1. Reduzir drasticamente a despesa pública pode comprometer o futuro
Há várias perguntas sem resposta neste relatório. Porquê 4.000 milhões? Porquê a partir de 2014? Porquê apenas nas despesas com pensionistas e funcionários públicos? São as rúbricas onde se gasta mais? Que planos existem para cortar em rúbricas onde se gasta muito, como por exemplo, no sector empresarial do Estado?

Hoje, a dívida e os juros da dívida, inflacionados pela crise financeira e pela crise do Euro, pesam muito na despesa pública. A situação foi agravada pelo facto de se ter aceitado incluir na dívida pública toda a dívida privada do sector empresarial do Estado, mesmo aquela que foi contraída sem o seu aval. A nossa despesa pública primária, sem os encargos com a dívida, está neste momento abaixo da média da União Europeia. Que sentido faz mais um programa de corte brutal na despesa pública que terá efeitos dramáticos no aumento do desemprego e na diminuição do rendimento disponível das famílias, agravando, portanto, a recessão em que o país está já mergulhado? Que sentido faz um programa de corte brutal da despesa pública justamente nos apoios sociais, na saúde e na educação que são exatamente os sectores em que a intervenção do Estado é, nesta altura, insubstituível e mais necessária do que nunca ao bem-estar das pessoas?

Ter como objetivo apenas a redução da despesa compromete o futuro. Nos últimos dois anos a redução da despesa na área da educação tem sido feita pela redução do serviço público: menos disciplinas, menos tempo de aulas e de permanência dos alunos na escola, menos atividades complementares como desporto e música, menos apoios na leitura e na matemática, menos aulas de recuperação e de estudo acompanhado, menos cursos profissionais, menos cursos para os alunos do abandono escolar (CEF), menos e maiores turmas e menos horas de contacto entre professores e alunos. Pode continuar a reduzir-se ainda mais a despesa desta forma, gerando mais e mais professores a mais, isto é, mais e mais desperdício e ineficiência, com sérios riscos de regressão nos resultados escolares?

2. Reduzir a despesa pública não é reformar o Estado
A reforma do Estado deve estar em permanência na agenda política, tanto do Governo como da oposição. A sustentabilidade da despesa pública bem como a eficiência e a qualidade dos serviços públicos são dos mais importantes desafios de qualquer Governo, sobretudo nas sociedades modernas e democráticas, nas quais as expectativas e necessidades de intervenção do Estado são crescentes e mais complexas. O programa que agora se apresenta peca por tardio e por ser genericamente desajustado da necessária reforma do Estado. Alguns exemplos.

Primeiro. Algumas medidas propostas nada têm a ver com a reforma do Estado, sobretudo as que permitem cortar despesa de forma simples sem contribuírem para melhorar a eficiência, a qualidade e a equidade dos sistemas públicos. Por exemplo, diminuir o salário de todos os funcionários públicos de forma permanente, ou diminuir o montante de todas as pensões, terá impacto imediato na despesa, mas nada terá de reformista. No mesmo sentido, o aumento de propinas no ensino superior e das taxas moderadoras no acesso aos serviços de saúde não racionalizam a despesa, apenas a transferem para as famílias.

Segundo. A proposta de despedimento de milhares de funcionários públicos não é exequível. Nem é preciso referir todo o quadro legal que é preciso negociar e alterar. Basta tentar responder a uma pergunta simples: quem, em cada serviço, define (e como) quantos são os funcionários a dispensar? Quem, em cada serviço, os seleciona (e como)? São os diretores-gerais e as chefias diretas? Com base no critério da idade ou no tempo de serviço? No mérito aferido pela avaliação de desempenho ou através de exames on-line aos 600.000 funcionários? Nos últimos anos, os mecanismos que impõem limites às novas admissões, permitido apenas um entrada por cada três saídas, têm sido mais eficazes na diminuição do número de funcionários do que as medidas de desvinculação.

O caso da educação ilustra bem como a redução do número de funcionários ou da despesa não se traduz necessariamente em ganhos de eficiência e de sustentabilidade. Afirma-se que, tendo em conta o previsível decréscimo do número de alunos por razões demográficas, existem professores a mais. Mas dado o défice de qualificação dos adultos e o elevado abandono escolar precoce em Portugal, sabe-se também que é necessário atrair milhares de alunos que não estão ainda no sistema de ensino. Por isso pergunta-se: a proposta de dispensa de professores significa que o Governo desistiu de recuperar os milhares de alunos que abandonam a escola antes de chegar ao secundário? Significam que desistiu de proporcionar formação e qualificação a cerca de dois milhões de adultos que ainda não têm o ensino secundário, grande parte deles com menos de 40 anos?

O despedimento de professores também não torna sustentável e controlada a despesa em educação. De que serve reduzir o número de professores se não forem alteradas algumas regras relativas ao recrutamento, à progressão na carreira e às condições de trabalho? O número de professores e a despesa com remunerações continuarão a aumentar de forma não proporcional ao número de alunos porque os mecanismos instituídos no Estatuto da Carreira Docente produzem automaticamente esse efeito, com impactos negativos na sustentabilidade da despesa de educação. Por isso, antes de pensar numa medida tão drástica como os despedimentos, que se for exequível produzirá inúmeros impactos negativos tanto no plano educativo como no plano social, vale a pena equacionar a possibilidade de caminhos com futuro.

Terceiro. Aumentar a idade de reforma em um ano e aplicar, sem período transitório, as novas fórmulas de cálculo das pensões a todos os novos pensionistas ou até, como é proposto no relatório, recalcular as pensões de todos os pensionistas desde 2000, permite reduzir a despesa e introduzir uma alteração rápida das regras que melhoram a sustentabilidade da segurança social.

Não poderão, todavia, deixar de ser ponderados os efeitos muito negativos na quebra de confiança no sistema de pensões e reformas, sistema esse que foi historicamente construído como público exatamente por assim se reforçar a confiança no cumprimento futuro do acesso a benefícios pagos antecipadamente.

Quarto. As regras relativas a limites dos benefícios, como o plafonamento das pensões máximas, a restrição das possibilidades de acumulação ou o estabelecimento de mínimos em termos de idade e de anos de serviço como condição de acesso, devem ser objeto de permanente atenção. O mesmo poderemos dizer sobre as medidas de reorganização, integração e harmonização de regimes e dos serviços de saúde e de proteção social. Só é pena que o Governo tenha interrompido a trajetória das mudanças que vinham a ser feitas por governos anteriores.

Quinto. Finalmente, as medidas propostas, tanto para a educação como para a saúde, de transferência dos recursos públicos para operadores privados, nada têm a ver com a redução da despesa nem com a melhoria da qualidade dos serviços prestados. No caso da educação, o relatório parte de premissas erradas e de um preconceito ideológico contra a escola pública, propondo que se multipliquem os contratos de associação com escolas privadas. Está provado que esta medida faria aumentar as despesas e os desperdícios e não está provado que melhorasse o serviço de educação. Em contrapartida, temos já a prova de que a intervenção na escola pública pode melhorar os resultados escolares e a qualidade do ensino.
Ou seja, temos já prova de que reformar o Estado, em lugar de o privatizar ou reduzir sem critério, compensa tanto em termos de sustentabilidade da despesa como de qualificação dos serviços prestados.

Maria de Lurdes Rodrigues é presidente da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento e professora de Políticas Públicas no ISCTE-iul. A autora escreve segundo o Acordo Ortográfico.

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