A greve geral, os gatos e Eduardo Prado Coelho

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Quarta-feira passada, dia de greve geral, entre as muitas informações e apontamentos de reportagem que iam chegando ao PÚBLICO e que, online, iam compondo uma espécie de quadro vivo do que se ia passando, fixemos duas notas vindas de Setúbal, ambas assinadas por Ricardo Vilhena.

A primeira fala de um homem, "Pelé Semedo, 46 anos, na construção civil desde os 15, desesperado por ver que a supressão do comboio para o trabalho no Barreiro lhe há-de suprimir um dia de salário". O que fez Pelé? Na estação de comboios, junto à Praça do Brasil, explicou que a austeridade não o deixava fazer greve e por isso tentara tudo para chegar ao trabalho. "Vinha apanhar o último comboio do dia para fintar a greve de hoje. A greve fintou Pelé." A segunda fala de homens mas também de gatos. A comitiva da CGTP, com Arménio Carlos, foi recebida na Lisnave pelo piquete de greve mas também "por uma gataria incontável". Escreveu Francisco Vilhena: "Com quatro graus centígrados, os felinos aproveitam o calor dos carros. Repousados sob os capôs, os gatos exibem o facto de serem a espécie dominante nos estaleiros da Lisnave”. E são dominantes porquê? Porque, disseram-lhe no único café junto à entrada da empresa, visitantes queixaram-se da agressividade dos cães no local e disseram: ou nós ou eles. “Foram-se os cães, ficaram os gatos, livres de predadores”.

São histórias como estas, já de si crónicas quotidianas, que alimentam as crónicas dos jornais. Como resistir a um Pelé em Portugal, junto à Praça do Brasil, a ser fintado por uma greve? E à miragem de gatos todo-poderosos reinando sobre capôs de automóveis junto àquele que já foi o mais poderoso dos poderosos estaleiros navais portugueses?

Se Eduardo Prado Coelho vivesse, havia de reparar nestes episódios para alimentar o seu inesgotável Fio do Horizonte. Talvez em Pelé, que lhe suscitaria alguma conexão com o Brasil, mas certamente nos gatos. Era, aliás, um gato, a silhueta estilizada de um gato, que acompanhava os seus artigos no suplemento Mil Folhas, do PÚBLICO, como esta semana se recordou, a propósito do colóquio Eduardo Prado Coelho - O Edifício da Alegria, que reuniu no auditório da Gulbenkian curiosos e pensadores em torno da sua obra. Mas as crónicas? Quem as releu, passada a cadência mecânica dos dias?

Eduardo Prado Coelho (1944-2007) tinha, com as crónicas, uma relação tão leve quanto obsessiva, talvez porque nelas registasse muito do que, noutros textos, jamais escreveria - e, no entanto, fazia parte das suas reflexões, do seu olhar inquieto sobre o mundo. Quando Armando Silva Carvalho o desafiou, num texto, a "desembolar-se" de si próprio e a escrever coisas supostamente menos triviais nas suas crónicas, Eduardo Prado Coelho respondeu-lhe assim (Eu, verdadeiramente, 5/12/2006): "Estes amigos não sabem o que é uma crónica no jornal. Não é crítica literária, ao contrário do que supunha o desaparecido [José] Augusto Seabra. Não é lugar para fazer uma obra desembolada, de permanente e confidencial afirmação de si próprio. É uma dosagem de matérias mais ou menos controladas. Uma conversa de café, se quiserem, em que descomprometidamente se vai falando de gostos e desgostos. Só assim é crónica de jornal, e quando a faço é isso que deliberadamente desejo fazer. Intencionalmente."

E intencionalmente fazia. A última crónica que escreveu para o PÚBLICO (Ai Simplex!, 26/8/2007)) tratava de um assunto que era tudo menos trivial: a burocracia. Pois bem: uma empregada doméstica que trabalhava em sua casa, Maria Nágila Bezerra, brasileira de nascimento, "começou a não aparecer ou a chegar mais tarde". Nenhuma aventura, nenhum contratempo pessoal, apenas um labirinto burocrático a que se viu sujeita no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras. "Para ir ao SEF", escreveu Eduardo Prado Coelho, "a Nágila levantava-se antes de o Sol nascer para se deslocar de Alverca até Lisboa, onde, às portas do SEF, se organizava uma fila imensa de pessoas que esperavam cinco e seis horas para serem atendidas. E quem as atendia? Gente zangada com a vida que parecia ter uma especial volúpia em criar dificuldades." Esta história viveu-a de perto, outras absorvia-as de mais longe. Como cronista, Eduardo Prado Coelho foi também um pensador de Portugal e do mundo. E faz-nos falta esse seu olhar. Astuto, como o dos gatos.

Crónica publicada na Revista 2 de 18 de Novembro de 2012

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