De Filipe Mendes a Phil Mendrix: uma história do rock'n'roll português

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Filipe Mendes começou por ganahr destaque nos Chinchilas Daniel Mendoça

Dos concursos "yé-yé" com os Chinchilas às noites com os Ena Pá 2000, Filipe Mendes, guitarrista extraordinário, atravessa a história do rock português. Cinquenta anos de carreira celebrados este sábado no Ritz.

Filipe Mendes carrega o seu amplificador para o exterior do edifício. É de válvulas, é precioso e a trepidação causada pela calçada portuguesa pode danificá-lo. Filipe gosta daquele amplificador. Um Budda personalizado: onde se lia o nome da marca, lê-se agora "Mendrix", nome de guerra do guitarrista. Muito cuidado, portanto. Filipe assegura que tudo está bem antes de o passar para a bagageira do carro: os panos dispostos para proteger da turbulência rodoviária, o ângulo a que será necessário erguê-lo para que viaje serenamente para o seu lugar. Filipe Mendes, Phil Mendrix, estava a dias de uma festa em grande: 65 anos de vida, 50 de carreira. Esta noite, no Ritz Clube, em Lisboa (22h30, 10€).

Uma hora antes de o amplificador regressar à bagageira, falava connosco num corredor dos estúdios da Antena 3. Estava ali enquanto estrela convidada do programa Prova Oral, conduzido por Fernando Alvim e Xana Alves. Falávamos do "yé-yé" no Monumental, dos estudos nos EUA, na década de 1960, de Jimi Hendrix ou de Santana. Mas Filipe estava intranquilo. O relógio aproximava-se da hora marcada.

"Estou aqui com o coração nas mãos... É que ainda tenho que montar as minhas coisas". O programa estava prestes a arrancar e o amplificador e a guitarra ainda não tinham saído do corredor. E ele precisava da guitarra no estúdio. A entrevista não seria entrevista sem o contributo dela. Filipe Mendes e uma guitarra: assim se pode descrever, resumo resumidíssimo, a história deste homem que celebra esta noite 50 anos de carreira. Em palco, estarão Camané e os Ena Pá 2000, Jorge Palma e Rui Veloso.

Os "yé-yé" Charruas e os Chinchilas, a banda onde Mendes se revelou. Virá Sílvio Piroli, seu guitarrista na década passada no Brasil. E muitos mais - talvez Carlos Zíngaro surja a tempo para a jam final. A abrangência dos convidados não deve constituir surpresa. Na verdade, é como se Filipe Mendes estivesse cá desde sempre. Elenquemos: Chinchilas, Heavy Band, Psico, Roxigénio, nos anos 1960, 1970 e 1980. Nos 1990 e seguintes, Ena Pá 2000 e Irmãos Catita, responsáveis pelo novo baptismo enquanto Phil Mendrix.

"Não gosto do nome. Até acho pretensioso." Mas a verdade é que, quando o vemos no estúdio da rádio, Mendes é Mendrix realmente. O cabelo grisalho em desalinho ("os meus cabelos têm liberdade de expressão"), a guitarra de motivos florais psicadélicos, o blues hendrixiano: Hey Joe e o Star Spangled Banner imortalizado em palco de Woodstock. Zumbido imponente, este de Filipe Mendes.

O homem e uma guitarra

Gimba, músico e compositor, fundador dos Afonsinhos do Condado e, entre outras coisas, Irmãos Catita: "O Filipe voa. Quando começa a "curtir", acho que levita mesmo". Manuel João Vieira, dos Ena Pá 2000, Irmãos Catita ou Corações de Atum: "O Filipe Mendes ao vivo é explosivo, é o melhor guitarrista português de todos os tempos". Carlos Mendes, companheiro de geração, supra-sumo "yé-yé" nos Sheiks: "Para além de virtuoso, tem um gosto extraordinário no modo como acompanha. É capaz de tornar uma música miserável numa coisa boa". João Paulo Callixto, investigador: "Para além da experimentação que fazia na guitarra, tem uma grande particularidade que o distingue: os estudos nos EUA [em 1967] e o que aprendeu lá, não só nas aulas, mas no quotidiano, que lhe deu uma componente técnica que não existia cá".

É verdade, Filipe andou muito por fora. Lembra-se da infância em Moçambique, quando "adormecia ao som dos batuques e das fogueiras". Dos concertos em Chicago, durante os estudos americanos. Do samba no Brasil, onde viveu na década de 1980 "no mato, a 80 quilómetros de Belo Horizonte". Em 2012, aqui está. O homem é ele e a sua circunstância, escreveu Ortega y Gasset. Filipe Mendes é ele e uma guitarra.

Estávamos em 1970. Gimba tinha dez anos. No Curto-Circuito, sucessor do Zip-Zip, são apresentados os Chinchilas. "Até o meu pai, que me levava aos festivais de jazz, comentou que tinham um grande som". Os Chinchilas eram a banda de Filipe Mendes. Participara nos concursos "yé-yé" do Monumental, em Lisboa, palco privilegiado da micro-revolução rock"n"roll no Portugal do Estado Novo. Em 1970, já tinham editado o single que juntava D. João, pop de comentário social, a Barbarella, onde o psicadelismo se revelava. "O Filipe Mendes era uma lenda. Para mim, era como o McCartney", confessa Gimba. A sua dimensão na cultura popular era, porém, diferente. Os Chinchilas podiam ser "o grupo português mais freak que já existiu", como destaca Manuel João Vieira, mas faziam o circuito de bailes repletos de versões e acabariam, como outros, quando os seus membros foram para o serviço militar. Mas Filipe nunca parou.

"O rock português dos anos 1960 e 1970 acabou por ficar esquecido por culpa do mediatismo e imediatismo que chegou com o boom dos anos 1980", diz João Paulo Callixto. "Quem não viveu a época esquece-se de que já existia música e um cenário que foi também importante para esse boom. E o Filipe deu a cara. Estava constantemente na estrada". Gravando discos, como o singleUrso Ki, colaborando com músicos, de José Cid a Tonicha, e integrando bandas como a Heavy Band, os Psico ou os Roxigénio do espalha-brasas António Garcez.

Em 1982, o mito desapareceu. Mudou-se para o Brasil. Dez anos depois, regressou. Refundou os Roxigénio, que viriam a partilhar concertos com os Ena Pá 2000. Manuel João Vieira já conhecia os Chinchilas de D. João e Barbarella - certamente também a famosa versão de I"m a believer, dos Monkees. Pouco depois Filipe Mendes, rebaptizado Phil Mendrix, passava a partilhar o palco com os restantes Ena Pá 2000 e Irmãos Catita. Fazia-se a ponte: à velha guarda sua contemporânea juntavam-se aqueles que descobriam um veterano virtuoso, com um carisma peculiar e um entusiasmo transbordante.

Esta noite, subirá ao palco para uma noite de celebração. Um par de dias antes, resumia a sua carreira desta forma: "Tentei ser o mais honesto possível. A honestidade que se transforma em espontaneidade. Se conseguir transmitir isso, já se entretém o público". Sessenta e cinco anos de vida, 50 de carreira. A modéstia dos grandes.

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